Sunday, August 27, 2006

História do Interior (parte 2)


A casa do Sr. Mário de Almeida era típica da classe alta do interior. Naquele final da década de 70, as filhas já haviam ido à Disneyworld, por exemplo, o que, se já não constituía uma excentricidade, pelo menos era sinal de uma vida folgadamente confortável.

Mário recebera uma herança considerável de seu pai, fazendeiro de café e pecuarista que multiplicara em duas décadas o patrimônio da família várias vezes, até que os maus hábitos alimentares e a voracidade nos negócios o infartassem precocemente, aos 42 anos. Deixou Dona Cotinha, sua viúva, hábil bordadeira desprovida de qualquer iniciativa, e Mário, seu único filho, que aos 21 anos tornou-se o homem mais rico da cidade, controlando várias fazendas de café e gado nelore, uma transportadora, uma construtora e uma concessionária de caminhões. Casou-se com Ruth quando tinha 31 anos e ainda era o melhor partido da cidade, e ela 17. Ao longo de três décadas, perdeu a transportadora e a maior parte das terras em boates e cassinos do Rio de Janeiro e do mundo, além de vários negócios que enriqueceram alguns felizes oportunistas.
Naquela manhã de quinta-feira, Dona Ruth, mulher de Mário, entrou no quarto da filha Daniela como todos os dias, batendo os tamancos nos tacos sintecados e logo abrindo as cortinas, animadíssima:

- Vamos acordar, que está um dia lindo!

Daniela teve tempo de virar-se com um sorriso.

Na mesa de café da manhã, a família ruidosamente reunida, Mário lia nos jornais as boas oportunidades dos classificados, sem prestar muita atenção à conversa das três filhas e o caçula. Dona Ruth e a empregada traziam à mesa o pão, a manteiga salgada, a margarina, o doce de leite, o café passado no coador de pano e o temido leite que vinha da chácara todos os dias, com suas natas que nunca seriam coadas, o gosto azedo irremediável, mas do qual as crianças eram obrigadas a consumir quatro copos diários. Acreditava-se na família que o leite artesanal trazido da chácara era mais saudável e nutritivo do que as modalidades vendidas em sacos plásticos naquela época. Anos depois, Márcia, a filha do meio, ao cursar a faculdade de ciências biomédicas, realizou uma análise daquele leite, constatando grande contaminação por coliformes fecais e outras bactérias, o que vingou os anos de provação das crianças da família e sepultou para sempre a idéia do leite vindo da chácara em latões de alumínio.

Por um instante, Mário deu-se conta da existência das crianças e percebeu suas filhas transformadas em adolescentes atraentes, enquanto abandonavam a mesa. Pensou consigo mesmo:

- 'Tô fodido…

Na frente da casa, Dona Ruth organizava o embarque rumo ao colégio:

- Vamos, Dani, 'tá em cima da hora!

- Pode ir, mãe, que eu vou andando, não vai ter a primeira aula. Preciso gastar umas calorias.

Deu um sorriso perfeito de filha perfeita.

O carro partiu e Daniela seguiu pela calçada, acenando com uma mão para o carro que passava, enquanto com o outro braço apertava contra o peito uma prancheta e alguns cadernos. Andava devagar, cansada pela noite em claro, a cabeça doendo um pouco pela ressaca, a boca pastosa e amarga. Tinha a sensação de irrealidade que ocorre depois de uma noite sem dormir sob o efeito de substâncias antagônicas.
Após alguns quarteirões, percebeu que um maverick preto a seguia. Acelerou um pouco a marcha e dobrou a esquina. Pouco depois, o carro seguiu o mesmo caminho. Ela continuou andando apressada, e virou mais uma esquina. Na metade desse quarteirão, o carro preto a alcançou. Um homem de uns quarenta anos, olhos claros e barba crescida baixou o vidro e sorriu para ela, que resolveu parar de andar. O carro encostou junto a guia. Olhando para todos os lados, ela abriu a porta e pulou dentro do carro.

- Seu louco, minha mãe acabou de passar!

- Ei, eu 'tava vendo. 'Tô na esquina já faz uns 10 minutos. Vem cá, me dá um beijo…

- Não, sai daqui, daqui há pouco o meu pai também sai p'ra trabalhar.

- Então abaixa aqui, que ele não te vê.
João abriu o zíper da calça, forçando a nuca de Daniela com uma das mãos.

- Você é foda, mesmo, hein? Vam’bora! Corre!

O carro arrancou cantando os pneus.


Esse João era um tipo de quarenta e dois anos que ainda frequentava a saída dos colégios. Havia chegado à cidade quando tinha ainda dezoito, vindo de São Paulo. Filho único, sabedor das modas da cidade grande, imediatamente tornou-se o playboy da cidade. Ele conferia status às meninas que o namoravam, e todos os garotos queriam ser seu escudeiro.

Claro que encontrou alguma resistência, de início: os rapazes que então dominavam a noite da cidade não gostaram nada quando ele começou a aparecer demais. Na festa de 15 anos da Solange, por exemplo, ele chegou próximo à meia noite, com seus amigos todos em jaquetas de couro. Nessa época, todos estavam bastante envolvidos com suas motocicletas Honda 750 Four, que haviam mandado vir do Paraguai, e andavam em formação pela cidade, fazendo poses excêntricas e executando acelerações assustadoras. Ao penetrar na festa sem convites, seu bando causou excitação entre as meninas e um certo desconforto entre os rapazes. Quando tocaram a valsa, ele estava cuprimentando a aniversariante, e não viu mal em tomá-la para a dança. Solange, que era baixinha, dentuça e normalmente usava óculos pesados (é claro que, para a festa, não os colocara, preferindo uma lembrança turva de seus 15 anos a usar suas lentes pesadíssimas), enrubesceu lisongeada e concedeu a dança, que seria um dos momentos mais emocionantes da sua adolescência (anos depois, ela ainda queria acreditar que o casamento com João havia sido uma real possiblidade, e não uma fantasia sua). A valsa foi tomada como um desafio irreconciliável aos rapazes da cidade que, liderados por um certo Esquilo, foram reunindo um considerável exército no lado de for a do salão de festas. As meninas sugeriram que João saísse pelo porta da garagem, mas ele se recusou. Saiu com seu bando pela porta da frente, e atravessou a multidão em silêncio. Quando já estavam a meio na calçada, alguém jogou uma garrafa nas costas de um dos motoqueiros, que virou e xingou. Foi o sinal para que a confusão começasse. O grupo de João conseguiu chegar às motos e fugir, um deles ainda passou com o pneu em cima do pé de alguém.
Mais tarde, ainda naquela noite, João encontrou o Esquilo em um bar. Eram dois contra dois, que em menos de um minuto destruiram completamente o estabelecimento e foram parar na calçada. João bateu muito em Esquilo, e continuou batendo com uma corrente mesmo depois que o adversário estava já inerte, no chão. A briga somente acabou por conta de uns tiros que alguém disparou, e todos fugiram.

A fama de João espalhou-se rapidamente depois daquele episódio. A rivalidade com Esquilo cresceu durante os anos até que o inimigo apareceu morto nas pedras do rio Tibagi, jogado do alto da ponte. O crime nunca foi esclarecido.
João amadureceu sem casamento, sem trabalho fixo, sem objetivos maiores que comer as galinhas caipiras, como ele chamava as meninas da cidade. Seu envolvimento com drogas sempre foi suspeito pelas mães da cidade, que tentavam coibir o envolvimento de suas filhas com o dito cujo. Com o tempo, porém, foi sendo melhor tolerado pela sociedade, em boa parte graças à boa reputação de seu pai, médico que, influenciado pelo ambiente, acabou transformado em pecuarista, e sua mãe, oriunda de uma família quatrocentona de São Paulo, que, apesar de aparentemente oligofrênica, era com certeza a pessoa mais refinada e delicada da cidade, servindo de modelo para todas as outras senhoras.

Aos quarenta e dois anos de idade, João já havia sido incorporado à cidade como um problema administrável, um sociopata camarada. Já não era tão irresistível às moças das gerações seguintes. Havia algumas, porém, de uma certa qualidade, que ainda valorizavam a sua companhia. Daniela pertencia a esse grupo.



Foram até uma rua erma de um bairro residencial pouco ocupado. Durante o trajeto, Daniela não falou nada e não dirigiu o olhar ao motorista, que falava olhando em sua direção, às vezes cuidando da estrada.

- Fica calma, tá tudo legal… Relaxa… você acha que o tio ia te deixar na mão?

Daniela continuava séria e muda. O movimento do carro causava-lhe uma náusea leve. Ela evitava o vômito deixando o vento roçar em seu rosto, agitando seus cabelos negros; tinha experiência nesse tipo de situação. Por fim, falou:

- Não saiu nada no jornal… nem ia dar tempo, também.

- Não esquenta, ninguém viu nada. A gente não podia ter feito mais nada, a não ser se foder de graça.

A menina olhava pela janela, na direção oposta a João. Olhar para o seu rosto sorridente de olhos brilhantes piorava sua náusea.

- A gente podia ter levado pro hospital…

- Tá maluca? Com todo mundo naquele estadinho? O que você ia dizer pro médico? E pra polícia? Nem a pau!

Dirigiu em silêncio por um momento, agora sem sorrir.

- Ele já tinha apagado antes, na festa – disse, depois de alguns minutos. Ela não respondeu.

Chegaram a um lugar que parecia seguro. Não havia casas na vizinhança, somente terrenos baldios onde a mamona crescia prosperamente entre o capim, sem que ninguém cuidasse. Desligou o carro.

- Fica tranquila, que não vai dar encrenca nenhuma.

- Já deu, João… o cara tá morto. O que é que tinha naquele pó que você pegou, caralho?

- Olha aqui, calminha aí. Você sabe que eu só trabalho com farinha de primeira. Mas, sei lá, o cara devia ter algum problema, fraco do coração, sei lá… Aconteceu, pronto.

- Como você consegue ser tão frio…

- Olha aqui, só não sou é burro de cair só porque um moleque fez cagada... Ei, o que essa guria tá fazendo aí?
Uma menina da idade de Daniela saiu do meio do mato, atravessando o terreno baldio por uma trilha invisível a partir do carro.

- O que que ela tá pescoçando aqui? - gritou o João.
Daniela reconheceu, nesse instante, a colega de classe, que olhou o casal de relance através do pára-brisa.

- Desencana, é a Flávia, é da minha classe, ela é na dela...

- Por que parou pra olhar, a puta?
João metia medo em Daniela quando ficava naquele estado agressivo. Daniela tentava controla-lo:

- Calma, calma, ela nem prestou atenção, a gente é que tava bem no caminho dela…
João continuou xingando muito, até que a menina pediu-lhe que a levasse à escola, que a segunda aula começaria em 15 minutos. Ele foi resmungando, ela tomando vento no rosto.
Chegando a alguns quartteirões do fundo do colégio, a menina pediu que parasse para ela saltar. João segurou na sua mão.

- Espera que eu vou te dar um presentinho p'ra alegrar o dia.
Pegou uma caixa de fósforos e, de dentro dela, tirou um pedaço minúsculo de papel de filtro, com o desenho da Betty Boop.

- Um docinho pro seu recreio.

- Nem tô a fim, Johnny. Tô no maior bode…

Mas pegou o papelzinho de ácido e o enfiou num envelope colado dentro da agenda, que fechava com cadeado. Beijou o
outro na boca, e saiu do carro apressada. Ele ainda a seguiu com os olhos até que virasse a esquina, medindo suas nádegas firmes de adolescente oscilando dentro das calças Soft-Machine.
Enquanto esperava soar o sinal da segunda aula, Daniela fumava um Marlboro encostada na parede do vestíbulo do corredor, junto com os outros alunos atrasados. Nesse momento, chegou Flávia, a menina que os havia flagrado no terreno baldio, e juntou-se ao grupo silente. Não se cumprimentaram. Daniela observava a colega através da fumaça que soltava em anéis concêntricos. Era conhecida em todo colégio pela habilidade com que realizava essa manobra. Era também conhecida como uma das meninas mais atraentes e sexualmente ativas da escola, sendo desejada por todos os meninos e por grande parte do corpo docente. Soou o sinal. Daniela esmagou a bituca com o salto da bota.

No caminho até a classe, que ficava ao fim de quatro rampas sucessivas, Daniela teve tempo de puxar o assunto com a outra.

- Oi, e aí? Você mora ali no Quebec, né?

- Oi. Moro sim.

- Olha, eu queria te pedir uma coisa: não espalha que você me viu hoje cedo lá no carro…

- Ih, nem encana, pode deixar, fica sossegada.

E foram andando rumo à matemática, falando sobre homens.


A manhã custou a passar, as aulas vinham lentas e incompreensíveis. Daniela resistia em usar a dose de ácido que tinha na agenda, julgando que ia precisar de suas faculdades mentais na maior integridade possível. Na hora do intervalo, no entanto, todo o mundo já sabia da notícia: Vinícius havia sido encontrado morto na porta da igreja. A polícia procurava por um Opala preto. Daniela foi ao banheiro e ingeriu Betty Boop. Cancelaram-se as aulas após o intervalo, já que poucos alunos retornaram. Daniela foi para casa com sua nova amiga Flávia. Passaram algumas horas olhando fotos antigas, até que Flávia teve um ataque de ansiedade inexplicável, e foi embora correndo. Daniela, que não estava em condições de entender muita coisa, trancou-se no quarto até a noite, vendo bichos estranhos na penumbra.

Saturday, August 26, 2006

A Revisão

Eu nunca reviso o que escrevo. Quando o faço, fico meses corrigindo, melhorando, até que o texto acaba parecendo imbecil. Sei de outras pessoas que não revisam: o Paulo Coelho, por exemplo. Mas por razões místicas, já que o cara é quase tão supersticioso quanto os seus livros, acha que pode estragar o que a conjuntura cósmica propiciou, e aí prejudicar sua conta bancária. Acho que ele custa a acreditar no sucesso que faz, ou fez, sei lá, não tenho acompanhado as vendagens.

Quando não reviso, como na maior parte das vezes, acabo publicando uns erros boçais. Uma amiga, Esmeralda, acaba de detectar um deles: na primeira parte de "História do Interior", uma das carolas, Olga, surge no primeiro parágrafo do texto e some da história. Na verdade, o nome dela muda para Laura, e eu esqueci de corrigir todas as ocorrências.

Primeiro pensei em chama-la de Olga por conta de uma velhinha que um dia eu conheci num restaurante chinês que havia na Alameda Santos. Essa Dona Olga era uma senhora de uns oitenta e poucos anos, branquíssima, de olhos azuis muito claros. Era o começo dos anos 1980, e eu morava num apartamento da Fernão Cardin, dividindo com uns amigos, conhecido por todos os frequentadores como "O Antro". Éramos muito duros, naquela época de estudantes, e comíamos mal a maior parte do mês. De vez em quando, íamos a esse restaurante chinês que tinha rodízio, comíamos como camelos bebem água, e saíamos de lá intoxicados pelo glutamato que eles botavam no rango pra fazer a gente salivar. Naquele dia, eu e o Soró, que não morava no Antro mas podia ser considerado um "sócio-atleta", competíamos sobre os rolinhos primavera, que era, talvez, o que de melhor a cozinha daquele chinês cometia. Na mesa ao lado estava Dona Olga, que se intrometeu na nossa conversa, falando que gostava muito de comida chinesa. Aí, disse: "clarro, porr que eu sou chinesa, né", ela tinha um sotaque húngaro. Havia nascido e sido criada na China. Contou uma série de histórias interessantes, de como ela havia se apaixonado por um sujeito, e depois reencontrado com ele num avião, depois de 20 anos, e casado com ele. De como seus dentes eram bons graças ao uso de bicarbonato diariamente, que seu pai, bioquímico, sempre indicara. Mas depois de dez anos teria que ir à dentista, Dra. Mara, que ficava na Rua Tutóia. Ela não se lembrava do número, mas tinha uma memórria excelente quanto a lugares, acabarria achando o consultório. Pediu ajuda com as bengalas, ela usava duas, e quando demos por nós estávamos levando a velhinha ao consultório da dentista, duvidando que ela realmente conseguisse achar o lugar. Achou. Falou de umas netas que ela queria nos apresentar, despedimo-nos, nunca mais nos vimos. Mas às vezes eu me lembro das histórias dela, e achei que seria um bom nome para uma das velhinhas carolas.

Enquanto escrevia, porém, decidi que seriam realmente castas e religiosas, até sucumbirem aos pecados do orgulho e da inveja, ao final do conto. A Dona Olga era muito malandra para ser uma delas. Então, lembrei-me de uma poema do Dummond, "Casamento do Céu e do Inferno", que termina assim:

"Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz,
O resto vai para o inferno."

Decidi que Olga seria Laura, então. Só que fui incompetente na correção, e sobraram algumas Olgas. Beatriz sempre foi Beatriz, em homenagem à minha amiga Beatrice Neumann, que mora em Porto Alegre.

O Soró que eu mencionei é um grande amigo meu da faculdade de medicina, hoje é neurologista. Muita gente acha que o apelido dele deriva de um personagem de uma novela que passou nos anos 80, mas, na verdade, o nome do cara da novela é que foi inspirado no dele. É que na nossa classe havia a Carmela Negrão, filha do Walther Negrão, que escrevia e ainda escreve novelas para a Globo. Como vivíamos na casa deles, o Walther pegou o nome do Soró para o personagem, que autorizou, achando que se tratava de um privilégio. Mas acabou perdendo a propriedade do apelido, que ficou para sempre com o personagem.

O Antro mereceria um livro. Não vou nem começar, aqui. Esse é só um post meta-lingüístico. Em relação aos erros sem revisão, peço desculpa a todos os leitores desse blog. Quem quiser apontá-los, em comentários, não se avexe, estará fazendo um favor. Beijo a todos.

Wednesday, August 23, 2006

História do Interior (parte 1)


As irmãs carolas Laura e Beatriz costumavam a sair de casa todas as madrugadas, garantindo um quórum mínimo para a missa das seis, mesmo em dias como aquela quinta-feira, em que a grama dos jardins estava branca de geada e a temperatura aproximava-se do zero.
Estranharam o Maverick preto virando a esquina, num horário em que habitualmente os seus passos ecoavam solitários pelos paralelepípedos decadentes das ruas antigas da cidade.
Ao contornarem a esquina da igreja Matriz, ainda puderam ver o carro arrancando, deixando para trás um vulto deitado na calçada em frente às escadas. Laura apertou com força o braço de Beatriz, e apressaram o passo numa mudez espantada.
Descobriram o cadáver já enrijecido de um garoto com o rosto meio coberto pela jaqueta de couro, os lábios azuis entreabertos, emoldurados por um bigodinho ainda incipiente.
Laura rezava para seus santos e Beatriz gritava para que o padre acodisse.


Correu gritando igreja adentro. Entrou na sacristia com o desembaraço de assídua frequentadora, mas não encontrou o padre. Voltou correndo o quanto podia até a calçada:

- Vamos! Temos que tirar o carro da garagem!


O carro era um Chevette vermelho que somente era posto em movimento nas ocasiões extremas. Até alguns anos antes, Beatriz ainda saía com o vermelhinho regularmente a fim de fazer as compras mensais no supermercado. Filas enormes de motoristas impacientes formavam-se atrás da destemida septuagenária motorizada, que enfim decidiu desistir das suas saídas, a pedido do prefeito.

Apesar do carro estar parado há meses, o motor funcionou imediatamente, graças ao hábito que Beatriz cultivava: todas as manhãs, após a missa, deixava que o motor funcionasse alguns minutos, justificativa perfeita para que pudesse ouvir seu programa de rádio favorito, que juntava o jornalismo policial recheado pelas reconstituições de crimes com reportagens médicas financiadas por panacéias charlatanescas.

Às duas senhoras não ocorreu telefonar à polícia ou ao hospital, ou mesmo pedir ajuda a algum vizinho. Imaginavam-se chegando à Santa Casa com o pobre defunto juvenil, misericordiosas, enérgicas e triunfais.

Ao retornarem à igreja, deram-se conta de que teriam de carregar o corpo para dentro do veículo. Tentaram arrastá-lo, sem sucesso. Como Laura começava a sentir palpitações, entraram novamente no carro e foram recorrer ao Seu Arlindo, antigo capataz da fazenda de café que ainda àqueles dias prestava às duas senhoras pequenos serviços braçais, apesar de ter somente um dos braços, ironicamente. Nos idos da fazenda, havia um elevador no silo de café, que levava os grãos a um andar superior, que emperrava com regularidade. Num desses episódios, Arlindo foi empurrar as correntes do mecanismo de um lado, enquanto um outro funcionário puxava as tais correntes do outro lado. Quando as engrenagens se soltaram, Arlindo foi puxado para dentro do mecanismo. A mão e boa parte de seu atebraço esquerdo foram perdidos no acidente. Apesar disso, continuou sendo uma pessoa extremamente prestativa. Com o braço direito e o que lhe restava do esquerdo, podia levantar mais peso do que a maioria dos homens. Mesmo a viola não deixou de ser uma de suas principais paixões: Arlindo aprendeu a fazer as posições com a mão direita e a percutir o ritmo com uma palheta presa a uma espécie de pulseira, que ele colocava no cotoco.

Àquela hora a casa de Seu Arlindo já estava acesa. Reconhecendo o som do Chevette vermelho, já estava à varanda quando Laura conseguiu estacionar.

- Vamos, Seu Arlindo, corra que é caso de morte!

Arlindo saltou para o banco de trás, enquanto Laura guiava cuidadosamente e Beatriz relatava a assombrosa ocorrência.





Chegaram novamente à igreja com o Sol já dourando as escadas. Surpreendentemente, o cadáver havia desaparecido.

- Minha mãe santíssima! – benzeu-se Laura.

Com muito jeito, Seu Arlindo sugeriu que talvez o defunto talvez não estivesse morto, esses meninos que não sabem beber às vezes vão parar na sarjeta, mesmo, mas de uma hora para a outra acordam…

- Seu Arlindo, então eu não sei reconhecer um defunto? O coitado estava ali durinho, com o rosto coberto, bem morto, sim, senhor…

As palpitações retornaram, e Laura começou a sentir desconforto. Beatriz reconheceu imediatamente os sintomas.

- Laura, acho melhor irmos até o hospital. Você está branca que nem uma cera!

- Nem pensar! Precisamos saber o que aconteceu com o nosso menino.

Aquilo não podia ficar assim. Laura sentia uma excitação que desconhecia desde os tempos de infância, quando a aventura fazia parte da sua vida rural. Já na casa dos setenta anos, tinha o humor azedo das viúvas virgens. Perdera o marido aos 19 anos, um ano após o casamento, vítima de uma picada de urutu-cruzeiro, no meio do pasto. É claro que a união se consumara fisicamente, mas não chegaram a ter filhos, nem tampouco chegaram a compartilhar verdadeira intimidade afetiva, em tão breve convívio. Pelo, contrário: Laura temia as noites em que seu marido, um homem de poucas palavras e gestos grosseiros, decidia procurá-la no seu lado da cama para saciar-se rapidamente e então ressonar até a madrugada, quando levantava antes da primeira luz e, depois do café preto, saía a cavalo para verificar pessoalmente todos os detalhes da administração da propriedade. Quando enviuvou, Laura sentiu quase um alívio; em todo caso, mesmo após observar o luto rigoroso que os modos da época exigiam, nunca mais considerou nenhum pretendente. E não foram poucos, visto que fora uma moça que poderia ter sido considerada bonita, apesar de uma compleição um tanto frágil: tinha tez muito branca, como a de uma boneca, lábios borrados de vermelho como se tivesse acabado de chupar picolé de groselha, sempre, e uns olhos negros muito grandes e abertos. E, principalmente, tinha um dote muito atraente, vastas fazendas de café por todo o Paraná e São Paulo. Mas privou qualquer homem tanto de si quanto de sua fortuna, preferindo envelhecer dedicada à caridade e à igreja. Existência morna, sem grandes extravagâncias, agruras ou aventuras. Até aquela manhã. Sentia calores estranhos e o cérebro reativando regiões há muito postas em repouso relativo pela esclerose e pelas isquemias transitórias. Demorou a admitir que era muita excitação para ela.

Mas acabaram convencendo-a. Seu Arlindo tomou a direção e rumaram à Santa Casa de Misericórida.

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Subiram a rampa do pronto socorro ameaçando atropelar alguém.

- Acode, acode!

Laura foi posta numa cadeira de rodas, sob protesto. Ao deslizarem Pronto-Socorro adentro, deram com o padre Geraldo cercado de gente, no átrio. Policiais, os repórter da rádio, o correspondente do jornal de Curitiba, curiosos, todos rodeavam o padre, que contava como havia encontrado o corpo do guri, à porta da igreja, já azulado. Fazia um sorriso mal dissumulado e às vezes gesticulava para contar melhor como tinha conseguido arrastar o corpo até o Fusca da congregação.

As duas irmãs olhavam à distância, em silêncio. Depois de medida a pressão de Laura, retiraram-se rapidamente:

- Vamos, Seu Arlindo, que isso aqui está um tumulto.

Cumprimentaram o padre friamente, com um aceno de cabeça.

•••••••••••••••••


No decorrer dos anos, o altar que Beatriz devotava a Nossa Senhora Aparecida foi ganhando importância na cidade. As irmãs organizavam novenas que chegavam a atrair comadres de cidades vizinhas. Seus quitutes eram comentados por fiéis de toda a parte. Começaram a realizar festas em benefício do orfanato que em nada deviam às quermesses da paróquia.

Nunca mais pisaram na igreja, alegando problemas de saúde.

Saturday, August 19, 2006

Saudades dos Meus Monstros e Vilões

(ilustração: Goya, "Perro en la Arena", 1821)

Um dos maiores desafios de ser pai é aturar os vídeos e programas infantis. No final do dia, quando chego em casa, é hora da Bebel assistir tv e relaxar. Afinal, ela teve um dia duro, envolvendo muito escorregador, trepa-trepa, balanço e areia. Aí eu chego e fico lá, assistindo com ela. Tem dias em que consigo furtivamente colocar o ipod e abrir um livro. Se ela percebe, lança sobre mim um olhar de censura, tira os fones dos meus ouvidos e deita sobre o livro. Como eu posso não me interessar pelo Barney??

O Barney é a atual paixão de Bebel. Pra quem não tem filho: trata-se de um tiranossauro camarada, meio gay, roxo e com uma dentição prognata de PVC. Passa no Discovery Kids, diariamente, e ainda tem uns dvds e cds como golpes de misericórdia. Bebel vê o dvd do Barney todos as noites, antes de dormir. Já houve a época do Cocoricó, do Elmo, da Xuxa, atualmente a tortura é o Barney. Não sei o que irrita mais, se é o dinossauro ou as crianças que o acompanham. Todas querendo ser pop stars infantis, fazem tudo demais: sorriem demais, gritam demais, são afetivos demais, dançam demais... Tem um moleque mais velho com cara de latino que é especialmente abominável. Já é crescidinho, é condescendente com os pirralhos mais jovens, e se acha! No dvd do Elmo tem também umas ciranças irritantes, um ruivinho CDF que faz as coreografias também com um rigor de menino-prodígio. Deve acreditar ser tão fofo quanto ouve dizer que é.

Mais irritante ainda que os pentelhos-prodígio são os roteiros: todo mundo é bonzinho! O Barney parece uma tia velha com os trejeitos do Dr. Smith de "Perdidos no Espaço". Mas bonzinho. O Dr. Smith era uma bicha má, fazia intrigas, sua ganância e egoísmo sempre acabava em encrenca. Naquele planeta hostil, provavelmente seria sacrificado pelo resto da tripulação, cedo ou tarde. Mas no Barney não tem vilão. Até o Lobo Mau é bonzinho! Barney ensina-o a soprar para encher um balão, ao invés de derrubar a casa dos porquinhos. Que horror... perdeu toda a graça. E, também, como as crianças vão aprender que a casa do Prático é mais segura porque ele é um cara mais trabalhador? Não vão. Depois de encher o balão, o lobo diz que tem fome, e Barney oferece-lhe um sanduíche de manteiga de amendoim. No "Xuxa Só Para Baxinhos 2" também há um lobo vegetariano, que quer comer as "frutinhas" da Chapeuzinho.

Esses roteiros são americanos, e americanos tendem sempre à correção política. O americano médio, que mora em Ohio, tem 1,7 filhos e come junk-food diariamente, não gosta de ver o Lobo Mau comer a vovozinha, metaforicamente. As histórias infantis clássicas são fruto da idade média européia, e são basicamente histórias de horror. Os contos de fada sempre têm um antagonista terrível e poderoso, para que o herói obtenha uma vitória que significa alguma coisa, eticamente. Quando o Barney dá o sanduíche ao lobão, tira qualquer possibilidade de um enfrentamento digno entre protagonista e antagonista. E a história fica inócua e chata, com todos se "amando" muito, sem começo, nem meio, nem fim... um amor mole e sem risco.

Os contos de fada mexem com coisas muito primitivas do ser humano, como medo, agressividade, amor, ódio, morte, erotismo. Usam uma liguagem simbólica que imprime profundamente no inconsciente das pessoas. A Marilena Chauí, apesar de hoje estar passando por essa fase miserável e incongruente, fez aquela bonita análise sobre esse simbolismo, nos anos 80. Os americanos de hoje em dia não lidam bem com o conceito de inconsciente, têm a fantasia de que podem lidar com o mundo de uma maneira plenamente racional. Acreditam muito em "aconselhamento" psicológico, mais do que em psicoterapia, enxovalham o Freud o quanto podem, sempre que podem. Quando eu fazia faculdade em Boston, tive uma aula em que iríamos analisar um filme do Hitchcock, "Quando Fala o Coração", em que ele se aventura pelo mundo do inconsciente e da psicanálise - um roteiro tosco e pueril, é preciso dizer. Mas o filme fala do incosciente, de pacientes psiquiátricos, tem cenários do Salvador Dali para retratar os sonhos do personagem, é um filme sobre a mente e a neurose. O professor, então, antes de iniciar a projeção, fez uma preleção onde ele disse para que relativizássemos o que veríamos; que o filme fora produzido numa época em que ainda se acreditava nas idéias do Freud, antes que se verificasse que essa história de incosciente é, na verdade, "um meio de vida para um punhado de espertalhões em Park Avenue"...

Talvez o inconsciente não seja mesmo assunto para americano. Incompatibilidade cultural. Como sexo livre não é assunto pra muçulmano fundamentalista. Psicanálise, como se diz de doenças de fundo genético, é pra quem pode, não pra quem quer. Mas não precisavam acabar com o antagonismo entre o Lobão e a Chapeuzinho. Isso eu acho demais. Um abuso. Esquecem-se da violência que há no coração de crianças pequenas. Ontem mesmo, a Bebel foi a uma festa de aniversário, e fez muito sucesso, com sua mini-saia Burbery's que a vovó deu de presente. Num certo momento, um menino e uma menina, mais velhos, cercaram a coitada e começaram a empurrar. Ela caiu de boca no chão, encheu de areia, os meninos continuaram a segurar sua cabeça, seu rosto encostado no chão. A Patrícia saiu correndo, deu um esporro sério nos garotos, em frente aos pais condescendentes.

O que você acharia se um cara bem mais alto que você, com o dobro do peso, o perseguisse pela rua, passasse uma rasteira em você e sentasse em cima do seu peito, depois saísse andando calmamente, furtando seus pertences mais valiosos? Isso aconteceu comigo quando eu tinha uns 6 anos. O Bolão roubou todas as minhas figurinhas do álbum de 1970, em plena luz do dia, e saiu andando calmamente pelo pátio do Grupo Escolar Hugo Simas. Ninguém levantou a voz ou a mão para defender a legalidade, naquele momento. O Bolão era filho de uma família rica de Londrina, eu cheguei a ser amigo de dois de seus irmãos. Mas o cara era um garoto-problema. Só arranjava confusão, desde uma idade muito precoce. Depois de dar muita cabeçada, achou-se, dizem. Foi estudar gastronomia, disseram que hoje é chef no Emiliano. Preciso ir lá, um dia. Descobrir uma barata na minha sopa e chamar a vigilância sanitária...

Pois é. Também tenho ódio no coração. Todo mundo tem. Esse negócio de se esconder do demo não dá certo. Ganhei de dia dos pais a obra completa do Guimarães Rosa. No Grande Sertão:..., ele fala uma frase muito bacana: "quem muito se evita, se convive".
No contexto, fala sobre um camarada que evitava o demo e ouvia as vozes dele nas capoeiras, a despeito dos cuidados. Rosa vai querer dizer que o Deus e o Diabo estão em todas as coisas, estão dentro das pessoas. São princípios simbólicos, não entidades reais. São figuras criadas pelos seres humanos para personificar coisas abstratas e fundamentais, o Bem e o Mal que subsiste em tudo, simultaneamente. Quando falamos do Lobo Mal, temos a oportunidade rara de confrontarmo-nos com o Mal no estado puro. Não temos de ponderar que se trata de um animal em extinção, cumprindo seu papel na cadeia alimentar, se é uma criança abandonada e criminalizada por uma sociedade hipócrita: trata-se de um assassino cruel que devemos eliminar a todo custo, para que a história acabe bem.

Não entendendo muito de pedagogia, mas sinto falta dos bons e velhos maniqueísmos que faziam confiar no mocinho na primeira infância, identificar-se com o bandido na adolescência e libertar-se na vida adulta.

Monday, August 14, 2006


Tempo

(ilustração: Marcel Duchamp, "Etant Donné", 1946-1966.)

Quando minha mãe resolveu fazer uma arrumação na casa, recebi uns 300 discos de vinil que eu colecionei desde criança que estavam sob sua custódia. Saí à procura de um, como direi, "toca-discos", uma "vitrola", uma "pick-up" pra tocar esses discos que eu não ouvia há mais de 20 anos (argh!). Depois de algumas horas na Sta. Efigênia, perguntando e procurando, achei um negócio da China: um conjunto de duas pick-ups Technics Mk II, com cases profissionais, por um preço magnífico. Coisa de MC desiludido. Mas o cara só vendia o par...

Liguei pro Jair, "Jaco! Achei um par de Mk II com case, o preço das duas juntas não dá pra pagar os cases! Aí, quer rachar comigo? Você fica com uma e eu com outra!"

O Jair: "Pô, Dimão, tô dentro, cara, demais!"

Eu: "Legal, cara, fou fechar, então!"

Ele: "Maravilha! Mas, Dimão, vem cá... o que que é MkII mesmo?"



***


É bom haver confiança entre sócios. Isso foi há três anos. Instalei a coisa no meu home-theater, e o som ficou meia-boca. Tive a oportunidade de ouvir uma meia dúzia de velhos amigos de vinil antes que a Bebel nascesse e fosse instaurada a lei da mordaça. Depois disso, mudamos para um apartamento maior, e a pick-up não chegou a ser instalada, nem o home-theater. Nossa mudança foi meio intempestiva. Morávamos há uns 8 anos no Edifício São Carlos, na República do Líbano, bem em frente ao parque. Estávamos acostumados à vista das árvores, à vista da Paulista, ao sol alaranjado do final de tardes de verão, ao apartamento em si. Mas ficou miúdo, principalmente após a convulsão que a Patrícia teve no puerpério. Foi preciso contratar um babá para ajudar durante o dia, e aí ficou mesmo apertado.

Os vizinhos eram ótimos. Raramente os víamos, é um prédio de apenas 5 andares, dificilmente as pessoas compartilham uma voltinha de elevador. O Clodovil morava no térreo, é certo que é uma personagem polêmica, no mínimo. Mas a Dona Tereza era gentil e atenciosa. É a dona do prédio, praticamente. Seu pai o construiu nos anos 1940 ou 50, ela herdou metade do prédio, enquanto que a outra metade ficou com a segunda mulher do pai, fato que nunca aceitou com serenidade. Ao longo dos anos, Dona Tereza foi tratando de comprar os apartamentos que eram da madrasta, através de terceiros, e reintegrou quase todo o imóvel à sua posse. Quando estávamos quase abandonando o prédio, Patrícia teve uma crise de choro bem na frente de Dona Tereza, que se comoveu: ofereceu seu apartamento pessoal, que era maior e ocupava todo o 2º andar, para que ficássemos mais confortáveis. Infelizmente, recobrou o juízo depois de alguns dias, e voltamos atrás no negócio.

Acabamos mudando para perto, mesmo, na Domingos Leme. Meio na correria. Nunca gostamos muito deste apartamento onde estamos. A proprietária é um "case" sem rodinha, uma maluca egoísta e cheia de Botox. Então, os quadros não chegaram às paredes, não fizemos as alterações, sentíamos como se fosse provisória, a nossa estadia. E não instalei minha Technics MkII.

Mas a Bebel já vai fazer 2 anos, e ainda estamos entre as paredes nuas. Hoje resolvi instalar o toca-discos, pelo menos. A uma certa altura, toquei o Clube da Esquina 2, do Milton e mineiros associados. Esse disco a Silvinha Aguiar me apresentou no primeiro ano de medicina, em 1982. Eu morava numa garagem na Vila Clementino, alugada de uma Dona Carmen, muito simpática e maluca. A garagem era o reduto da galera caloura. Eu me lembro que o Clube da Esquina 2 era um disco velho, na época. Mas hoje vi na capa que ele é de 1978. Tinha 4 anos, só, em 82, e a gente achava muito antigo. Hoje olhos para os meus discos relativamente recentes e vejo que têm quase todos uns 10 anos de idade.

A noção de tempo deve vir de uma relação que fazemos com o quanto já vivemos. Por exemplo: quando temos dois anos de idade, viver mais um ano é viver metade de todo o tempo que você já conheceu e concebeu durante sua vida. É uma eternidade. Quando temos 24 anos, um ano vale tanto quanto um mês para a criança de dois anos. Assim, em 82, os 4 anos do Clube da Esquina significavam para meus 17 anos da época tanto quanto 9,65 anos significam hoje para os meus 42...

Esqueça a matemática. O que eu quero dizer é que a vida acelera. Isso todo o mundo percebe. Cada ano passa mais rápido, voa, todo mundo reclama. Quando estávamos esperando a Bebel, tinha a esperança de que criar um filho devia restabelecer o ritmo: perceber a vida pelos olhos da criança, ver como ela cresce e evolui, iria desacelerar a coisa. Mentira. Logo você é surpreendido de como seu filho cresce rápido, como aprende rápido, e acredita falsamente que as crianças de hoje são mais rápidas. É o seu tempo que anda mais rápido.

Uma vez perguntaram ao Sto. Agostinho o que Deus havia feito antes da criação do Universo: ficou esperando sentado no nada? O santo ficou desesperado, atormentado que era com as questões sinucais da teologia. Depois de um mês dormindo mal, chegou à resposta: que o Tempo havia sido criado junto com o Universo. Antes disso, não havia "antes". Depois do fim do Universo, não haverá "depois".

Tempo é presença. É vivência, mesmo que seja vivência de uma pedra ou de uma bola de gás Hélio. Se não houver ninguém ou nada para testemunhar, o tempo deixa de existir. O tempo não existe dentro de buracos negros, ele se apaga junto com a luz encarcerada, que não permite haver evidência das coisas. Tempo é memória. Quanto mais longa for essa memória, quanto mais extenso for o período vivenciado, mais rápido o tempo corre.

...

É realmente melhor fazer uma canção...

Thursday, August 10, 2006


(ilustração: Francis Bacon, "Untitled", 1944)

O texto a seguir é baseado num sonho que tive. Provavelmente, muitas pessoas vão pensar que eu preciso de ajuda, mas achei a história boa.





O Risoto


Quando ele entrou em meu escritório, sua figura longelínea e expressão aguda pareceram-me familiares, de um modo perturbador, inexplicável. Tinha a propriedade de fazer com que as pessoas falassem mais do gostariam, que se expusessem de uma maneira mais pessoal à que normalmente se permitiriam. Por isso, por várias vezes flagrei-me contando tudo a meu respeito, enquanto que o homem assentia com um sorriso meio difícil de interpretar.

Ao fim de uma hora de entrevista, sabia dele pouco mais que o nome - John Carlyle - e que era um artista plástico americano, supostamente de alguma importância em Nova Iorque. Queria que eu colaborasse com uma instalação de sua autoria, compondo uma música que serviria como trilha sonora para a obra. Não consegui extrair maiores informações nesse primeiro encontro, provavelmente pelo tanto que falei e o pouco que ouvi.


***


Resolvi pesquisar a respeito do meu cliente prospectivo. Fui até a casa de Beatrice, jornalista de caderno cultural e minha referência no mundo das "artes decorativas", como ela gostava de dizer. Apesar de já ser o fim da tarde, ela acabava de acordar, e tentava se recobrar da ressaca que a festinha da noite anterior proporcionara. Ao mencionar o nome do sujeito, ela recobrou imediatamente suas faculdades:

- Você conheceu "o" John Carlyle?
- Humm, eu não sabia que ele era uma celebridade...
- Mas ele é! Não acredito que você nunca ouviu falar nele! Em que planeta você mora?

Admito ser meio desligado, mas achei estranho que não tivesse a mínima idéia de uma pessoa de tão aparente fama.

- O cara foi um dos artistas mais importantes da era "pop", causou o maior furor no fim dos anos sessenta. Diziam que ele estava morando na Bahia desde há muito tempo, mas nunca ninguém viu. Você tem que me arranjar um encontro com ele!

Saí de lá aproveitando um acesso de náusea da minha amiga, e fui para casa ainda mais intrigado.


***


À noite, fiz uma busca pela internet e encontrei vinte e uma páginas que faziam referência ao nome do artista. Realmente, ele andava sumido desde meados da década de setenta. Era considerado um gênio, por alguns, ou maldito, pela maioria, o mesmo estereótipo de sempre. Apesar de pertencer à geração que inventara a pop-art, criara seu próprio e estranho caminho, unindo sua arte à psicanálise e às viagens com ácido. Criara um método segundo o qual conseguiria prever as ações de uma determinada pessoa mediante a observação escrupulosa de seu comportamento, estando sob o efeito do LSD.

Numa página dedicada mais propriamente às ciências ocultas do que às artes plásticas, havia uma descrição bastante obscura do que teria sido sua última obra: segundo o relato, ele teria observado durante nove meses uma adolescente americana e concluíra que ela iria matar uma criança de 5 anos, sua vizinha. Teria se aproximado e seguido a adolescente durante mais sete meses, até a suposta consumação do crime. Documentou tudo com fotos de técnica duvidosa e uma crueza aviltante. Reconstituiu a cena do crime e convidou a adolescente para um jantar. Obteve mais fotos.

Num outro "site", dedicado principalmente ao sado-masoquismo e a fetiches bizarros, diziam que o artista havia recuperado o corpo da vítima, que Jeniffer - este era o nome da adolescente assassina - deixara abandonado em um barranco e…

Era horrível demais para ser verdade. Segundo o site, Carlyle promoveu um ritual canibalístico, onde a assassina comeu a carne do corpo da vítima sem que soubesse.

Aquilo era demais pra mim, mesmo considerando o lado mórbido da minha personlidade que o anonimato da internet deixava expressar-se. Mesmo que fosse mentira, uma lenda urbana ou invenção da escória meio demenciada que escreve nesses sites bizarros, aquela história causou-me uma repugnância incontrolável e um medo profundo…
Desliguei o computador e resolvi evitar tudo o que poderia dizer respeito a esse homem.


***


Tive um sonho estranho, nessa mesma noite, em que um mendigo demente, desse tipo nudista, que anda pelas ruas falando coisas desconexas, atravessava a rua dançando na frente do meu carro e, com um caco de espelho, refletia a luz do Sol nos meus olhos.


***


Patrícia ligou-me no celular, quando eu já estava a meio caminho de casa. Estavam no Spot, ela, sua mãe e uma amiga, para jantar.
O trânsito da Av. Paulista fez com que eu chegasse alguns drinques depois do esperado. As duas senhoras, a essa altura, já chamavam a atenção de todo o salão para suas gargalhadas e seus brindes de coquetel de champanhe, observadas por Patrícia, entre constrangida e enxaquecosa.
Ao passarmos do bar à mesa, John Carlyle acenou para mim, de um canto distante. As duas senhoras assanharam-se em perguntar quem era, mas eu não conseguia lembrar-me de quem se tratava, pois havia vários anos desde nossa entrevista.
No momento em que o garçon nos ilustrava sobre os especiais do dia, um outro trouxe à nossa mesa uma badeja com novos drinques, oferecimento do misterioso homem que me acenara.

- Que gentileza!

- Ele é um homem educado, Dimi. Convida pra sentar com a gente...

Eu não fiz a menor idéia de quem se tratava até Carlyle sentar-se à minha frente. Olhou-me com seu sorriso irritantemente seguro, e num instante senti meu estômago revirar como na noite em que descobri os aspectos bizarros de suas atividades. Ao lado de Carlyle, sentou-se uma menina muito jovem que - não havíamos notado - fazia companhia ao odioso artista. Essa garota, loura e franzina, jamais levantou os olhos em nossa direção. Escondia-se atrás de uma franja longa, através da qual sua maquiagem intrigantemente exagerada fazia-se notar.

O que se passou a seguir não faz parte de um mundo conhecido. Tudo parece muito confuso, e o entendimento que tive sobre o que ocorreu é mais baseado em sensações do que na memória de fatos objetivos. Veremos se consigo descrever.
Durante toda sua permanência na mesa, a menina olhou para baixo, e não emitiu palavra. Não que alguém se importasse com isso, além de mim. De certa maneira, era como se ela não estivesse ali, já que não fora apresentada a ninguém, e ninguém fizera questão de falar com ela. Algo similar passou a ocorrer comigo, a partir do momento em que Carlyle monopolizou a atenção das outras mulheres da mesa. Eu procurava encarar a menina, ela não dava sinais de que percebia a minha insistência, somente olhava para baixo, inerme. Mesmo assim, eu tinha a sensação de reconhecê-la. Em um dado momento, lembrei-me: era a assassina juvenil de Carlyle, ainda com a aparência que tinha há quase trinta anos, e isso não me surpreendeu, por alguma razão, como também não me surpreendeu a chegada de nossa refeição, em bandejas cobertas; ao descobrirem-se os pratos, vi à minha frente um risoto esverdeado; enquanto todos riam sonoramente, provei do risoto, senti seu gosto incompreensível e tive certeza de tratar-se da mesma refeição canibal que Carlyle servira à moça em sua famosa instalação; fui até seu ouvido, e perguntei:

- Por que você guardou isso para mim, durante tanto tempo?

Sem desviar os olhos na minha direção, ele respondeu, sério e sereno:

- Cuida de teu hálito, daqui por diante.

Nesse instante, tive a compreensão de uma realidade inexprimível: eu era todas aquelas pessoas reunidas, Carlyle, a menina assassina, a criança morta.

Saturday, August 05, 2006


(ilustração: croqui de Zuzu Angel, 1970)

Zuzu e a Ditadura


O país muitas vezes resiste em manter viva a memória da barbárie que foi o período de repressão que vivemos nos anos 60 e 70. Compreensivelmente, a gente quer esquecer o absurdo de um Estado governando com a "clava forte"; o terror da prisão, tortura e morte por motivos ideológicos; o silêncio dos homens e das idéias pela coação e o medo. Mas é preciso manter viva a lembrança do Inferno para que possamos ter percepção da Liberdade e da sua urgência.

Por isso, quando surge um filme como "Zuzu Angel", tem que prestar atenção. Tem que dar importância. Mesmo se não fosse o bom filme que é.

Lembro-me vagamente da Zuzu. Quando morreu, em 1976, vi muitos intelectuais e artistas ultrajados, mas ninguém podia dizer claramente a razão do ultraje. Que era: Zuzu fora morta pela repressão ao final de sua luta por conseguir encontrar o corpo do filho Stuart, ativista político preso e morto no DOI-CODI em 1972, parece. Em Londrina, naquela época, tínhamos pouca noção da repressão. Sempre a TV Globo tentava mostrar algo que se referisse a Zuzu. No Jornal Hoje, havia uns especiais de moda em que lembravam dela. Eu não sabia direito quem era, e estranhava a importância póstuma que davam a essa estilista. Não tinha idéia da tragédia da vida dessa mulher. Sua filha, Hildegard, era da Globo. Era jornalista e atriz, e aparecia na novela Dancing Days como ela mesma. Isso em 78, dois anos após a morte da mãe, a dramaturgia da Globo ajudando a dar o destaque ao caso. Hoje, Hilde é colunista d'O Globo, e tem gente que mete muito o pau nela.

Em Londrina era assim: nas aulas de Educação Moral e Cívica da escola pública, eu aprendia que em 1964 havia ocorrido uma "revolução". Os termos "golpe militar" e "ditadura" nunca foram ouvidos. O Médici era um presidente de olhos profundamente azuis que gostava de futebol. Na TV, a propaganda oficial dizia que o Brasil era um país que ia "pra frente". "Ou, ou, ou, ou, ou...". (Agora me atino de um possível sentido obscuro dessa vocalização, quem for da época vai entender.) As pessoas tentavam levar uma vida pacata e apolítica. Algumas por medo, outras por convicção ou egoísmo.

Houve uma vez em que deixei meu pai apavorado. Quando eu tinha uns 10 ou 11 anos, exatamente na época dessas barbaridades, fazia inglês numa classe de adultos, e o professor era um mórmon de Utah, o Lyle. Numa determinada aula, discutiu-se política trabalhista, por algum motivo, e Lyle discorreu sobre o sistema de "welfare" americano, comparando com o sistema soviético de seguro desemprego. Sua posição era obviamente pró-america, mas não deixou de falar coisas sobre o comunismo soviético que eu achei interessantes e novas. Um certo dia, pareceu-me pertinente citar essas informações numa redação da escola. Por sorte, talvez, minha mãe lia todas as minhas redações, e achou melhor mostrar essa ao meu pai. Ele leu e começou a gritar, dizendo que iríamos todos presos, que iria à escola de inglês espinafrar o professor, onde já se viu, expor uma criança a esse tipo de informação... Foi a primeira vez em que percebi o estado de censura e medo em que vivíamos. Nunca me passara pela cabeça a possibilidade de que minhas idéias, ou de qualquer outra pessoa, fossem passíveis de proibição. Eu chorei muito, com medo de que meu pai fosse preso por causa da redação. Ou que ele fosse até a
escola de inglês e acabasse com o respeito que eu gozava junto aos meus colegas e professores. Rasguei a redação, e escrevi alguma outra coisa sem qualquer tom político. Naquela noite também ouvi pela primeira vez as palavras, "subversão", "doutrinação", "DOI-CODI". Meu pai era médico, e dava aulas de Endocrinologia na Universidade Estadual de Londrina. Muitos anos depois fiquei sabendo que, naquela época, vários professores sumiram, mesmo por pouca coisa.

O Dadado era meu melhor amigo. O Ica, irmão dele, era o melhor amigo do meu irmão. Eles tinham um monte de irmãs mais velhas, umas mulheronas, algumas já na faculdade, que eu cobiçava muito, platonicamente. Mas esse não é o ponto: um dia, o Dadado me chamou num canto, na casa dele, e mostrou um jornalzinho que ele tinha achado nas coisas de uma das irmãs. Acho que era um exemplar do Pasquim. Por ser clandestino, o jornalzinho permitia-se a publicar coisas que seriam censuráveis não necessáriamente por razões políticas. O que meu amigo queria mostrar era uma sequência de fotos que mostrava uns moradores de rua transando. "Transando" é um eufemismo barato: mostrava um mendigo chupando uma mulherzinha em plena calçada. Aí chegava outro mendigo, brigava com o primeiro, e supostamente ganhava o privilégio de continuar chupando a moça. Eu achei muito interessante o sorrizinho dela, lembro até hoje. Na verdade, eu nem sabia que aquilo lá era uma coisa desejável. Pareceu meio nojento. Mas havia também uma outra matéria, com fotos de tanques dispersando uma manifestação na Cinelândia. Estudantes sendo presos e espancados a cacetete. Eu nunca tinha houvido falar daquelas coisas. Naquela época eu já havia aprendido a ficar na moita, em relação àqueles assuntos. Não comentei nada em casa, mas aprendi que havia coisas violentas acontecendo em outros cantos do país de que a gente não tinha a menor notícia.

A censura era uma coisa insana. Os milicos não se limitavam a censurar as obras e reportagens de cunho político, mas riscavam do mapa, também, peças que atentavam contra seu senso de decoro. Não se podia falar palavrão. Revista de mulher pelada, então, nem se fala. Minha puberdade foi abastecida pelas "Status" que só podiam mostrar peitinho. Isso talvez tenha estimulado minha criatividade erótica: hoje eu sou capaz de despir mentalmente uma mulher com um olhar de relance. Gesthalt.

Quando eu me mudei para São Paulo, em 1981, comecei a ouvir falar em "abertura". Um monte de exilados políticos voltava ao país, gente de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas que a mídia tratava com intimidade. Fundou-se o PT. Em 82 eu entrei na Escola Paulista de Medicina que, por ser federal, tinha um escritório do SNI, ainda, com um coronel que andava sempre de óculos Ray-Ban e fingia ser discreto. Na minha turma tinha até um agente infiltrado, o "Pom-Pom", que todo mundo sabia que era informante. Quando a gente fazia greve, eles ficavam fotografando a gente com uma teleobjetiva, lá da janela do escritório deles. Uma vez, eu e uns amigos fizemos um "bundão" pra foto. Espero que tenha ido pra minha ficha no SNI. Enfim, já eram tempos mais relaxados, em que o Figueiredo, meio embaraçado, promovia a desarticulação do sistema de informação e repressão da ditadura. Fizemos campanha na primeira eleição para governador desde o golpe, participamos do "Diretas Já"... Éramos todos socialistas de coração, mas não sentíamos muito risco nisso. Acho que foi o Paulo Francis quem disse que quem não é comunista aos 20 anos não tem coração. E quem continua socialista aos 40, não tem cérebro.

Em meio a tudo isso, fiquei sabendo de atrocidades cometidas pelo regime autoritário com gente muito próxima, que vinha de famílias socialistas. Havia fofocas sobre professores colaboracionistas. Sobre um dos professores de Medicina Legal ter sido atuante nas sessões de tortura do CODI. Por essa época, a ditadura e a repressão dos anos 70 ficou muito mais clara, para mim, mesmo que retrospectivamente.

Imagino a tragédia de Zuzu Angel como sendo a claustrofobia transformada em vida, uma perseguição por algozes sem rostos definidos, por assassinos que extinguiram o que há de mais querido e frágil na vida de uma mãe, a prole. Zuzu deve ter sido uma pessoa especialíssima, que conseguiu lidar com essa claustrofobia de uma maneira ruidosa, extrovertida, denunciante, corajosa. Mesmo que dissesse, como dizia: "corajoso foi meu filho, eu tenho somente legitimidade". Sua história é para ser contada a todos, por muitas gerações, para que não nos esqueçamos do horror.

Além dessa história trágica e magnífica, uma das melhores coisas desse filme é a Patrícia Pillar, que inunda a tela consigo sem fazer muita força. Uma interpretação de cinema, como nunca vi de um ator brasileiro, talvez, sem os excessos do teatro nem os estereótipos da tv. Leandra Leal também tem uma energia muito boa, e também o Daniel de Oliveira. O restante das atuações é meia-boca. O filme tem seus problemas. Mas eu tenho que relativizá-los, já que me fez arrepiar e chorar por duas horas.

(ilustração: Cristóvao Colombo, sec. XVI, autor desconhecido)

A HISTÓRIA DO SAL



A história do sal provavelmente veio trazida por mouros que contaminaram a Andaluzia com suas coisas orientais muitos séculos antes que meu avô a ouvisse contada pela sua mãe. Foi sendo passada de uma geração à seguinte, sempre com sabores renovados pela boca de quem a contou, que um ponto acrescentou, ou omitiu, ou variou. Minha avó materna contava histórias com inflexões virtuosísticas que, se empolgavam os ouvintes e enchiam a sala de cores, sons, cheiros e personagens, ao mesmo tempo garantiam que a história contada pertencia ao mundo da ficção. Provavelmente foi com esses recursos que contou a história do sal à minha mãe, que tinha um jeito mais distanciado, quase científico, de contar histórias. Essa maneira, embora oferecendo espetáculos menos grandiloquentes, deixava a gente com uma sensação de que aquilo realmente tinha acontecido numa época antiga, num reino distante.

Era uma vez um reino distante. Havia obviamente um rei. Esse monarca, após a decapitação de várias esposas, conseguira gerar três descendentes homens com uma camponesa que fora ao baile sem convite. Num episódio não muito bem esclarecido, a moça conseguiu burlar o esquema de segurança e aproximar-se do então príncipe utilizando um ardil que envolvia abóboras, animais domésticos e um determinado sapato.

A camponesa, ao tornar-se rainha, deixou-se levar por caprichos rastaqüeras. Num par de décadas conseguiu endividar o erário, através de infindáveis redecorações dos palácios e da aquisição de vestidos, sapatos e bolsas preciosos. De tudo isso, separou sua comissão, fazendo secretamente uma reserva particular em bancos sigilosos da europa central.

Quando o primogênito atingiu a maioridade, a situação econômica ainda era razoável. O rei, então, ofereceu-lhe uma esquadra fortemente armada e disse:

- Vai, filho, navega os mares e traz toda a riqueza que puderes carregar contigo. Faz isso para celebrar minha glória e meu poder.

Apesar da fanfarronice evidente no discurso do pai, o primogênito singrou mares, conquistou territórios, contactou civilizações até então desconhecidas, guerreou, saqueou, comprou e vendeu; ao cabo de um ano voltou ao reino com seus navios abarrotados de ouro e pedras preciosas, tanto que uma das náus acabou por adernar à entrada do porto, e foi a pique. O tesouro permaneceu no fundo do canal, em profundidade que desafiava a tecnologia da época. Vários aventureiros voltaram à tona afogados ou com os tímpanos estourados pela pressão, espumando de embolia. O navio repousou no fundo da baía durante muito tempo, até a chegada dos holandeses, mais de um século depois.

A rainha, entusiasmada com o novo afluxo monetário, empenhou-se então na construção de um palácio das artes na região montanhosa do país, que seria destinado a abrigar o repertório operístico de um compositor muito em voga na época. O terreno acidentado dificultou sobremaneira o empreendimento, que superou em muito o prazo previsto inicialmente. Mesmo depois de 10 anos do início das obras, o teatro ainda funcionava de maneira precária, sem os recursos hídricos – que incluíam chuvas reais, rios de água corrente e uma queda d’água de mais de 100 metros - em plena operacionalidade, além de apresentar falhas técnicas constrangedoras no mecanismo de abertura do teto lunar, que utilizava uma parelha de 200 cavalos. Dizia-se à época que a rainha e o tal compositor tinham um relacionamento que transcendia a fruição artística e, de fato, anos depois, quando o reino já entrava numa fase de profundo endividamento junto aos banqueiros internacionais, fugiram do país levando consigo pouco além dos códigos das contas numeradas.

À época da maioridade do segundo filho, porém, o teatro entrava no terceiro ano de construção, e a dívida pública ainda era administrável. Assim, o rei ofereceu-lhe uma esquadra não tão grande como a do primogênito, nem tão fortemente armada, mas bastante razoável, e disse:

- Vai, filho, navega os mares e traz toda a riqueza que puderes carregar contigo. Faz isso para celebrar minha glória e meu poder.

Então, apesar das limitações de seu equipamento bélico, o segundo filho singrou mares, conquistou territórios, conheceu civilizações remotas, guerreou, saqueou, estuprou, comprou e vendeu, negociou e chantageou. Ao cabo de três anos, retornou ao reino com uma considerável fortuna em ouro e pedras preciosas, que encontrou destinação imediata junto aos credores internacionais, que já então ameaçavam o país com sanções.

O terceiro filho chegou à idade adulta quando sua mãe já havia fugido com o compositor, e o país sofria a recessão e o desemprego. O novo ministro do tesouro, renomado teórico da macroeconomia, impôs uma política de despesas austera que, se por um lado conteve a inflação do período anterior, matou de fome e outras doenças um terço da população. Nessa conjuntura, o rei ofereceu ao último dos filhos um barco em estado precário, que se encontrava pendurado no porto com a água invadindo os porões até quase o nível do convés. O terceiro filho, então, conseguiu reunir uma tripulação de três marinheiros recrutados com promessas de ouro e pedras preciosas. Quando recuperaram a sobriedade, já em alto-mar, tiveram de conformar-se em drenar os porões com latas de meio litro, tarefa que consumiu as duas primeiras semanas de navegação. Não foram muito felizes em suas primeiras incursões em terra: em Macau, foram expulsos pelos portugueses e somente escaparam com vida graças à intervenção de uma esquadra inglesa, que se interpôs no caminho, provocadora. Na micronésia, foram capturados por uns selvagens canibais, e escaparam da refeição pela intervenção de um padre jesuíta que vivia na ilha há muitos anos, tentando trazer os nativos à fé cristã. Sua estadia na ilha foi breve, mas conseguiram tempo e material para calafetar os vazamentos do casco.

Por onde navegavam, tudo parecia ter sido já explorado. O mundo inteiro já tinha dono: os holandeses no sul da África e nas Antilhas, os ingleses em Borneo, franceses na Indochina, portugueses em Calcutá e no Japão.

Depois de alguns anos, a tripulação estava a ponto de desistir, castigada pelo escorbuto e o beri-beri. Quando o motim parecia inevitável – o capitão já tinha seu imediato na mira da pistola – avistaram ao longe um ilha muito branca e brilhante. Quando aportaram, descobriram tratar-se de uma ilha totalmente constituída de sal, descoberta bastante decepcionante para todos à bordo. O terceiro filho, após refletir por alguns momentos, ordenou que carregassem o navio completamente com sal. Tal decisão deflagrou a discussão que culminou com a morte do imediato.

Serenados os ânimos, partiram ao sabor dos ventos, tentando achar terras mais promissoras, principalmente porque o suprimento de água começava a escacear.

Quase um mês depois, começaram a ver algumas aves sobrevoando o navio; depois de alguns dias, viam sinais de plantas terrestres nas águas. Acabaram avistando uma ilha muito verde, com sinais de civilização. Foram acompanhando a costa, até avistarem um porto. Evitaram uma aproximação frontal, aportando numa praia deserta onde desembocava um riacho. Saciaram a sede de semanas, mas mesmo assim os dois tripulantes não conseguiram ânimo para acompanhar o terceiro filho na incursão pelo interior. Após enveredar pela mata durante algumas horas, alcançou um caminho batido, ao longo do qual as cabanas foram ficando progressivamente mais frequentes, até que chegou ao muro da cidade. Curiosamente, não encontrou viva alma durante o percurso, tampouco nos portões da cidade. Seguindo a arquitetura radial das ruas, foi aproximando-se do ruído da multidão reunida na praça central. Misturou-se à população a tempo de presenciar o carrasco baixar seu machado sobre o o pescoço de sua vítima infeliz. Ao indagar aos populares do que se tratava, soube que aquele fora o décimo cozinheiro a ser executado por não agradar ao paladar do rei. O terceiro filho intuiu naquele fato uma oportunidade.
Ainda naquela tarde, conseguiu penetrar nas cozinhas reais, misturado aos fornecedores. O jantar estava sendo executado sob os ciudados de um novo cozinheiro que dava ordens com ares desesperados. Ao fundo da cozinha via-se um altar com várias velas acesas, e no pátio externo diversos animais haviam sido sacrificados em honra de várias divindades incoerentes.

Quando teve oportunidade, o terceiro filho aproximou-se das panelas, e ousou provar do sauce bernaise: faltava um pouco de sal, mas a textura e a concentração do estragão estavam corretas. Ao provar a bouilleabasse, novamente notou a ausência do sal. Tal fato repetiu-se no borsh, nos blinis, na feijoada, na moqueca, no pad-thai, no polpetone com pappardelle al ragu, na bisteca grelhada: não havia sal naquela comida! Era esse o problema do rei.

Sem refletir muito sobre tal ignorância culinária, o terceiro filho cruzou novamente os limites da cidade e foi até o navio. Encontrou os dois sobreviventes da tripulação amasiados às nativas, que eram muito lúbricas, de cabelos muito longos e negros, mas também muito asseadas, chegando a tomar até onze banhos de rio diariamente. Refestalados com suas amantes, saciados pelas frutas tropicais e a caça fácil, os tripulantes somente esperavam que a mandioca fermentasse para que então somassem o etilismo aos prazeres que ora desfrutavam. Tanto que não perceberam a visita que o terceiro filho fez à náu, de onde saiu carregando uma pequeno saco de couro.

Ao retornar ao palácio, o jantar já havia sido servido. A voz do rei ecoava pelas galerias, furibunda. O terceiro filho aproximou-se da sala de jantar. A mesa magnificamente posta tinha aproximadamente dezoito pratos; todos haviam sido recusados pelo monarca. Prostrado ao chão, num choro deseperado, o cozinheiro tinha já o pé do carrasco sobre o seu pescoço, imobilizando-o. O rei esbravejava ainda a respeito de seu tédio gastronômico, até que deu a ordem da execução. Nesse momento, o estrangeiro invadiu a sala e, com grande desembaraço, demonstrou as vantagens culinárias do sal que levava no saquinho preso à cintura. O rei provou do beouf-bourgignon, agora com a quantidade apropriada de sal, e seu semblante iluminou-se; a galinha à cabidela foi devorada sem a mínima etiqueta; o risotto à milanesa não resistiu mais que minutos. Ao chegar à mousse de chocolate, entendeu que uma pitada só seria mais que suficiente para cada quilo de açúcar.

O rei ficou gratíssimo e trocou todo o sal que havia no navio por ouro e pedras preciosas, na proporção de três para um. Assim, o terceiro filho retornou à sua terra com três náus abarrotadas de preciosidades, as duas outras pilotadas por seus tripulantes, que acederam em voltar ao reino de origem caso pudessem levar consigo seis ou sete das suas esposas.

Ao adentrarem o porto, foram recebidos em festa por uma população combalida pela pobreza e um ciclo de pestes que dizimara muitos dos seus, incluindo seu pai e seu irmãos mais velhos. Assim, o terceiro filho foi aclamado o novo rei. Aplicou sabiamente os recursos que trouxe de além-mar. Em poucos anos, o reino voltava a prosperar. Todos viveram felizes para sempre.

Friday, August 04, 2006


(ilustração: Marc Chagall, "I and the Village", 1911.)

Meu Avô e o Mistério da Quiromante



Na noite que antecedeu a cirurgia de meu avô, coube a mim a vigília no quarto do hospital. Isso ocorreu por falta de parentes mais velhos que estivessem em condições de suportar o pequeno sofá que servia de cama aos acompanhantes. Minha avó já não conseguia controlar as históricas dores da coluna, e foi dormir em meu apartamento com aparente relutância e verdadeiro alívio.

Meu avô estava medicado com drogas que excitavam seu cérebro. Isso, combinado com a ansiedade, o fazia eloqüente e insone. Nessa noite, contou-me grande parte da sua vida, incluindo um segredo que todos da família sempre quiseram saber, mas que ele nunca havia contado a ninguém: o segredo da quiromante.


***

José Lopez Lopez - esse era o nome de meu avô - sempre fora um homem supersticioso, apesar de sua reconhecida inteligência. Confiava em presságios e agouros que a todos pareciam arbitrários, como no caso das abelhas: dizia que abelhas traziam boa sorte. Na casa da fazenda Maria Antonieta, por exemplo, o porão fora invadido e colonizado por abelhas europa que, com o passar dos anos, formaram uma imensa colméia. Mais de um funcionário teve a idéia de exterminar os insetos, mas ele nunca permitiu, dizendo que abelhas europa são dóceis. De fato, na mesa da cozinha, as tais europas ficavam entretidas com o melado que a cozinheira servia no café da tarde, e meu avô chegava a acariciar seus dorsos com o polpa dos dedos, sorrindo e incitando-me a fazer o mesmo. Eu acreditava que elas gostavam dos afagos, mas não me arriscava a imitá-lo. De noite, com todos dormindo e a casa silenciosa, eu ouvia o zumbido da colméia, atarefada em seus afazeres misteriosos.

A partir de determinada época, abelhas africanas começaram a proliferar pelo Brasil. Contavam que uns cientistas ou apicultores, não sei ao certo, haviam importado algumas colméias da África, e que haviam deixado escapar alguns enxames. Em poucos anos, tornaram-se raras as abelhas europa puras; a miscigenação com as agressivas africanas foi quase total.

Numa época em que a fazenda Maria Antonieta já havia sido vendida há muito tempo - e o destino da colméia do porão já não era mais assunto da família -, meu avô andava sozinho de carro, numa outra propriedade, orgulhando-se da plantação de soja. Num determinado momento, um enxame das infames africanas invadiu o carro e cobriu seu corpo. Ele ficou imóvel o quanto pode, mantendo a calma. Mas as abelhas começaram a picar, mesmo assim.

Chegou ao hospital de uma cidade vizinha já em coma. Salvou-se. Somente no braço direito, as enfermeiras contaram mais de trezentos ferrões. Depois disso, perderam a conta. Apesar de tudo, considerou-se sortudo por ter sobrevivido.

***

- Nunca dê trela a conversa de cigana!

Esse era o conselho que meu avô dava, quando a conversa tocava no assunto, corrompendo seu bom humor habitual e tornando-o muito sério.

Ele era natural de Almeria, cidade pobre do ressequido sul da Espanha do início do século, e provavelmente conhecera ciganas de um tipo que já não existe mais, cheias de magia e feitiços verdadeiros, e truques difíceis de desvendar. Quando criança, antes que ele emigrasse ao Brasil, uma cigana pegou-o pelo braço durante uma festa de santo e leu sua mão sem cobrar nada. Mas disse tudo o que viu: três desgraças iriam acontecer durante sua vida. E nomeou-as.

Meu avô contava que duas daquelas desgraças já haviam acontecido, mas ele não dizia do que se tratava. A terceira, que o assombrou a cada dia durante toda a sua vida, ele não contava nem sob a tortura infligida pelos netos perguntadores. Isso era tudo o que sabíamos sobre as predições da cigana de Almeria.

***

No quarto do hospital, os visitantes já haviam ido embora, com olhos brilhantes e os sorrisos estreitos de preocupação. Estávamos a sós, eu e meu avô. Ele começou a me fazer perguntas, tentando recuperar a intimidade consumida pela minha adolescência e pelo distanciamento geográfico: eu deixara Londrina havia uma década, aos 16 anos. Orgulhoso, perguntou-me sobre minha graduação em medicina; agastado, sobre minha desistência dessa profissão; incrédulo, sobre meus planos como músico; preocupado, sobre o meu casamento, que seria realizado no mês seguinte.

A noite quente chegava, trazendo uns incômodos cupins alados que rodeavam as lâmpadas do quarto de hospital, arruinando a imagem de assepcia do estabelecimento. Os ruídos moles da noite de domingo chegavam ao nosso quarto, indecisos como a vontade de continuar a vida no dia seguinte.

– Eu dei muita sorte nessa vida – disse-me, ao final de um silêncio provavelmente longo.

Compreendi sua necessidade de continuar conversando.

– Por que o senhor diz isso?

– É o que eu sinto, depois de tudo. Que eu dei muita sorte.
Onde eu ganhei dinheiro, mesmo, foi comprando e vendendo terra, momentos de sorte. O resto foi muito trabalho e pouco dinheiro.

Seguiu-se um longo silêncio, e achei que ele adormecera. Repentinamente, ele abriu os olhos e continuou a falar, numa euforia meio entorpecida.

Eu olhava para a gota que caía do invólucro plástico do soro na cânula que ia até o átrio do seu coração, e imaginava que tipo de droga poderia haver naquela poção.

A enfermeira da noite entrou. Apresentou-se e fez seu discurso padrão de hospital de luxo. Notando uma certa impaciência nos seus interlocutores, ajustou as bombas de infusão, entregou alguns comprimidos e voltou ao posto de enfermagem, ligeiramente preocupada com seu carisma.

Vários cupins jaziam no chão do quarto, e muitos outros continuavam circundando a lâmpada do teto. Os ruídos da noite exterior tornavam-se cada vez mais suaves e as luzes do hospital eram apagadas progressivamente, deixando os corredores a mercê das lâmpadas de emergência e dos relógios de ponteiros grossos e quase retangulares, que se movimentavam aos saltos de um minuto, sincrônicos.

Depois de um daqueles silêncios:

– Mas eu sei que não vou morrer hoje. Ou melhor, amanhã, nessa cirurgia. É muito triste, mas eu sei que não é minha vez, ainda.

A essa altura, eu já duvidava do seu estado de conciência e não tinha certeza se deveria estimular a conversação; mesmo assim, perguntei:

- Por que, avô?

- Porque a cigana me disse.

A maldição da quiromante... Ele estava prestes a revelar o segredo que escondera de todos durante toda a vida. Um estranho temor fez-me desejar que não tocasse nesse assunto, no leito do hospital, à véspera de uma cirurgia de tamanho risco.

- Quando eu era menino, em Almeria, uma cigana leu a minha mão. Nunca deixe uma cigana ler a sua mão…

Contava a história como se fosse a primeira vez. Eu o deixava contar, esperando, intimamente, que adormecesse.

- A tal da cigana me contou três coisas que iam me acontecer na vida… três coisas ruins…

(Que tipo de pessoa aterroriza um menino pobre de dez anos de idade com uma sentença que o perseguirá o resta de sua vida?)

- A última ainda não se realizou. A pior delas: que sua avó iria antes de mim.

Um arrepio percorreu-me o corpo.

- Por isso, eu sei que não vou morrer agora…


E suspirou, de um jeito muito sôfrego.

* * *

Eu sentia um desconforto profundo em saber, finalmente, qual era a maldição da quiromante. Cético, eu não confiava na imunidade que ela conferia ao meu avô, pelo contrário, preocupava-me sua disposição em revelá-la naquele momento tão crítico. A revelação do seu segredo mais escondido tinha um tom de desespero. Ou, melhor: denunciava um medo de morrer muito sério e fundamentado. Na verdade, seu espírito estava muito vulnerável naquele momento e ele lançava mão de todos os recursos para dialogar com a morte, que rondava por ali e provavelmente contaminava todos os seu pensamentos. Continuamos a conversar durante toda a noite, os cupins voadores foram caindo um a um, até não haver sobrevivente; a enfermeira entrou algumas vezes de forma burocrática, sem interromper nosso diálogo; o sol foi nascendo vermelho e já quente, os ruídos da manhã de segunda feira foram preenchendo a solidão da noite passada em claro.


A cirurgia foi bastante complicada, sua condição cardíaca era bastante precária: diabético, chagásico, sofreva uma séria de infartos relativamente extensos, havia várias lesões nas coronárias… Os médicos foram cautelosamente pessimistas. Não esperavam que fosse possível uma recuperação depois da série de intercorrências graves que houve, e dos procedimentos extremos que se fizeram necessários.

Na U.T.I., porém, recuperou-se de maneira surpreendente. Conseguiram retirar um balão que havia sido instalado na sua aorta, que auxiliava sua hemodinâmica. Foram reduzindo suas drogas e, quando tiraram os tubos o auxiliavam a respirar, suas primeiras palavras foram para que lhe trouxessem água com gás. Isso era um bom sinal, pois uma das maiores crenças de meu avô é de que a qualidade da água é fundamental para a saúde em geral. A água com gás grantiria a procedência da água mineral, excluindo a possibilidade de ser da torneira. Ele estava disposto a sobreviver, então.

Foi sobrevivendo. Começou a receber visitas, principalmente do meu pai, seu genro, ou ex-genro, que era médico e transitava pela U.T.I. com mais desenvoltura que os outros parentes e sabia traduzir com mais precisão o linguajar clínico. Foi numa dessas visitas de meu pai que foram levantar um pouco o encosto da cama do Sr. José, para que ele tomasse um chá com torradas, uma grande evolução na sua dieta pós-cirúrgica. A mudança de plano, depois de tanto tempo na horizontal, foi suficiente para desprender um trombo da veia cava, provavelmente formado durante os meses que ficou internado anteriormente à cirurgia, e ele morreu instantaneamente de embolia pulmonar.

Sentimos muito sua falta.