Friday, August 04, 2006


(ilustração: Marc Chagall, "I and the Village", 1911.)

Meu Avô e o Mistério da Quiromante



Na noite que antecedeu a cirurgia de meu avô, coube a mim a vigília no quarto do hospital. Isso ocorreu por falta de parentes mais velhos que estivessem em condições de suportar o pequeno sofá que servia de cama aos acompanhantes. Minha avó já não conseguia controlar as históricas dores da coluna, e foi dormir em meu apartamento com aparente relutância e verdadeiro alívio.

Meu avô estava medicado com drogas que excitavam seu cérebro. Isso, combinado com a ansiedade, o fazia eloqüente e insone. Nessa noite, contou-me grande parte da sua vida, incluindo um segredo que todos da família sempre quiseram saber, mas que ele nunca havia contado a ninguém: o segredo da quiromante.


***

José Lopez Lopez - esse era o nome de meu avô - sempre fora um homem supersticioso, apesar de sua reconhecida inteligência. Confiava em presságios e agouros que a todos pareciam arbitrários, como no caso das abelhas: dizia que abelhas traziam boa sorte. Na casa da fazenda Maria Antonieta, por exemplo, o porão fora invadido e colonizado por abelhas europa que, com o passar dos anos, formaram uma imensa colméia. Mais de um funcionário teve a idéia de exterminar os insetos, mas ele nunca permitiu, dizendo que abelhas europa são dóceis. De fato, na mesa da cozinha, as tais europas ficavam entretidas com o melado que a cozinheira servia no café da tarde, e meu avô chegava a acariciar seus dorsos com o polpa dos dedos, sorrindo e incitando-me a fazer o mesmo. Eu acreditava que elas gostavam dos afagos, mas não me arriscava a imitá-lo. De noite, com todos dormindo e a casa silenciosa, eu ouvia o zumbido da colméia, atarefada em seus afazeres misteriosos.

A partir de determinada época, abelhas africanas começaram a proliferar pelo Brasil. Contavam que uns cientistas ou apicultores, não sei ao certo, haviam importado algumas colméias da África, e que haviam deixado escapar alguns enxames. Em poucos anos, tornaram-se raras as abelhas europa puras; a miscigenação com as agressivas africanas foi quase total.

Numa época em que a fazenda Maria Antonieta já havia sido vendida há muito tempo - e o destino da colméia do porão já não era mais assunto da família -, meu avô andava sozinho de carro, numa outra propriedade, orgulhando-se da plantação de soja. Num determinado momento, um enxame das infames africanas invadiu o carro e cobriu seu corpo. Ele ficou imóvel o quanto pode, mantendo a calma. Mas as abelhas começaram a picar, mesmo assim.

Chegou ao hospital de uma cidade vizinha já em coma. Salvou-se. Somente no braço direito, as enfermeiras contaram mais de trezentos ferrões. Depois disso, perderam a conta. Apesar de tudo, considerou-se sortudo por ter sobrevivido.

***

- Nunca dê trela a conversa de cigana!

Esse era o conselho que meu avô dava, quando a conversa tocava no assunto, corrompendo seu bom humor habitual e tornando-o muito sério.

Ele era natural de Almeria, cidade pobre do ressequido sul da Espanha do início do século, e provavelmente conhecera ciganas de um tipo que já não existe mais, cheias de magia e feitiços verdadeiros, e truques difíceis de desvendar. Quando criança, antes que ele emigrasse ao Brasil, uma cigana pegou-o pelo braço durante uma festa de santo e leu sua mão sem cobrar nada. Mas disse tudo o que viu: três desgraças iriam acontecer durante sua vida. E nomeou-as.

Meu avô contava que duas daquelas desgraças já haviam acontecido, mas ele não dizia do que se tratava. A terceira, que o assombrou a cada dia durante toda a sua vida, ele não contava nem sob a tortura infligida pelos netos perguntadores. Isso era tudo o que sabíamos sobre as predições da cigana de Almeria.

***

No quarto do hospital, os visitantes já haviam ido embora, com olhos brilhantes e os sorrisos estreitos de preocupação. Estávamos a sós, eu e meu avô. Ele começou a me fazer perguntas, tentando recuperar a intimidade consumida pela minha adolescência e pelo distanciamento geográfico: eu deixara Londrina havia uma década, aos 16 anos. Orgulhoso, perguntou-me sobre minha graduação em medicina; agastado, sobre minha desistência dessa profissão; incrédulo, sobre meus planos como músico; preocupado, sobre o meu casamento, que seria realizado no mês seguinte.

A noite quente chegava, trazendo uns incômodos cupins alados que rodeavam as lâmpadas do quarto de hospital, arruinando a imagem de assepcia do estabelecimento. Os ruídos moles da noite de domingo chegavam ao nosso quarto, indecisos como a vontade de continuar a vida no dia seguinte.

– Eu dei muita sorte nessa vida – disse-me, ao final de um silêncio provavelmente longo.

Compreendi sua necessidade de continuar conversando.

– Por que o senhor diz isso?

– É o que eu sinto, depois de tudo. Que eu dei muita sorte.
Onde eu ganhei dinheiro, mesmo, foi comprando e vendendo terra, momentos de sorte. O resto foi muito trabalho e pouco dinheiro.

Seguiu-se um longo silêncio, e achei que ele adormecera. Repentinamente, ele abriu os olhos e continuou a falar, numa euforia meio entorpecida.

Eu olhava para a gota que caía do invólucro plástico do soro na cânula que ia até o átrio do seu coração, e imaginava que tipo de droga poderia haver naquela poção.

A enfermeira da noite entrou. Apresentou-se e fez seu discurso padrão de hospital de luxo. Notando uma certa impaciência nos seus interlocutores, ajustou as bombas de infusão, entregou alguns comprimidos e voltou ao posto de enfermagem, ligeiramente preocupada com seu carisma.

Vários cupins jaziam no chão do quarto, e muitos outros continuavam circundando a lâmpada do teto. Os ruídos da noite exterior tornavam-se cada vez mais suaves e as luzes do hospital eram apagadas progressivamente, deixando os corredores a mercê das lâmpadas de emergência e dos relógios de ponteiros grossos e quase retangulares, que se movimentavam aos saltos de um minuto, sincrônicos.

Depois de um daqueles silêncios:

– Mas eu sei que não vou morrer hoje. Ou melhor, amanhã, nessa cirurgia. É muito triste, mas eu sei que não é minha vez, ainda.

A essa altura, eu já duvidava do seu estado de conciência e não tinha certeza se deveria estimular a conversação; mesmo assim, perguntei:

- Por que, avô?

- Porque a cigana me disse.

A maldição da quiromante... Ele estava prestes a revelar o segredo que escondera de todos durante toda a vida. Um estranho temor fez-me desejar que não tocasse nesse assunto, no leito do hospital, à véspera de uma cirurgia de tamanho risco.

- Quando eu era menino, em Almeria, uma cigana leu a minha mão. Nunca deixe uma cigana ler a sua mão…

Contava a história como se fosse a primeira vez. Eu o deixava contar, esperando, intimamente, que adormecesse.

- A tal da cigana me contou três coisas que iam me acontecer na vida… três coisas ruins…

(Que tipo de pessoa aterroriza um menino pobre de dez anos de idade com uma sentença que o perseguirá o resta de sua vida?)

- A última ainda não se realizou. A pior delas: que sua avó iria antes de mim.

Um arrepio percorreu-me o corpo.

- Por isso, eu sei que não vou morrer agora…


E suspirou, de um jeito muito sôfrego.

* * *

Eu sentia um desconforto profundo em saber, finalmente, qual era a maldição da quiromante. Cético, eu não confiava na imunidade que ela conferia ao meu avô, pelo contrário, preocupava-me sua disposição em revelá-la naquele momento tão crítico. A revelação do seu segredo mais escondido tinha um tom de desespero. Ou, melhor: denunciava um medo de morrer muito sério e fundamentado. Na verdade, seu espírito estava muito vulnerável naquele momento e ele lançava mão de todos os recursos para dialogar com a morte, que rondava por ali e provavelmente contaminava todos os seu pensamentos. Continuamos a conversar durante toda a noite, os cupins voadores foram caindo um a um, até não haver sobrevivente; a enfermeira entrou algumas vezes de forma burocrática, sem interromper nosso diálogo; o sol foi nascendo vermelho e já quente, os ruídos da manhã de segunda feira foram preenchendo a solidão da noite passada em claro.


A cirurgia foi bastante complicada, sua condição cardíaca era bastante precária: diabético, chagásico, sofreva uma séria de infartos relativamente extensos, havia várias lesões nas coronárias… Os médicos foram cautelosamente pessimistas. Não esperavam que fosse possível uma recuperação depois da série de intercorrências graves que houve, e dos procedimentos extremos que se fizeram necessários.

Na U.T.I., porém, recuperou-se de maneira surpreendente. Conseguiram retirar um balão que havia sido instalado na sua aorta, que auxiliava sua hemodinâmica. Foram reduzindo suas drogas e, quando tiraram os tubos o auxiliavam a respirar, suas primeiras palavras foram para que lhe trouxessem água com gás. Isso era um bom sinal, pois uma das maiores crenças de meu avô é de que a qualidade da água é fundamental para a saúde em geral. A água com gás grantiria a procedência da água mineral, excluindo a possibilidade de ser da torneira. Ele estava disposto a sobreviver, então.

Foi sobrevivendo. Começou a receber visitas, principalmente do meu pai, seu genro, ou ex-genro, que era médico e transitava pela U.T.I. com mais desenvoltura que os outros parentes e sabia traduzir com mais precisão o linguajar clínico. Foi numa dessas visitas de meu pai que foram levantar um pouco o encosto da cama do Sr. José, para que ele tomasse um chá com torradas, uma grande evolução na sua dieta pós-cirúrgica. A mudança de plano, depois de tanto tempo na horizontal, foi suficiente para desprender um trombo da veia cava, provavelmente formado durante os meses que ficou internado anteriormente à cirurgia, e ele morreu instantaneamente de embolia pulmonar.

Sentimos muito sua falta.

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