Tuesday, December 04, 2007








A História do Gatinho Macarrão

(Ilustração: Pablo Picasso, "Maternidade", 1963)

(essa é uma historinha que tenho contado para minha filha Bebel na hora de dormir. É um ardil inescrupuloso para tentar atenuar os ciúmes que ela sente desde o nascimento de sua irmã Catarina. Aqui vai uma versão para adultos e crianças um pouco mais precoces.)



Astrid acordou com um solavanco mais forte, e não entendeu imediatamente onde estava. Despertou de um desses sonhos intermináveis e repetitivos, em que corria pelas ruas escuras e estreitas de uma cidade antiga, perseguida por uma leoa incansável. O som ritmado das rodas sobre as emendas dos trilhos lembrou-a de quem era e onde estava.

Os ratos que passavam correndo pelas vigas altas do vagão olhavam-na com desconfiança. Astrid não lhes dava atenção, apesar de sua fome. Comeu algumas castanhas que encontrara arranhando as sacas alojadas no compartimento e saiu à procura de água. A passagem de um vagão a outro só era possível através de uma junção estreita e instável. Apesar de sua índole doméstica e avessa a riscos físicos, Astrid caminhou rapidamente sobre a perigosa passagem e foi explorar os outros carros do comboio. Ouviu a conversa ruidosa dos trabalhadores do vagão carvoeiro. Conseguiu entrar despercebida num banheiro minúsculo e entorpecente; sorveu a água que caia em gotas da torneira há muito oxidada. Voltou rapidamente para o vagão de carga, evitando ser descoberta.

O dia de verão ia clareando, e com ele o calor dentro do vagão ficava menos suportável. Os ratos corriam menos pelas vigas, agora guinchavam raramente dentro de seus esconderijos insuspeitos, entregues a atividades misteriosas. Astrid olhava através das frestas os intermináveis campos de milho que davam a impressão de que o trem andava os dias inteiros sem sair do lugar. Mesmo as freqüentes estações, todas pareciam ser uma só, com sua caixa d’água, sua sala de telégrafo, seus funcionários uniformizados de azul escuro. Astrid enfrentava essa rotina havia várias semanas, o que já teria esgotado a maioria dos viajantes clandestinos. Mas não uma mãe em busca de seu filho.

Numa noite fresca e estrelada, o trem parou, guinchando e bufando, mas Astrid pode ouvir alguém gritar:
- Cedar Rapids! Cedar Rapids!

Desceu do vagão esgueirando-se pelos trilhos sombrios. Alcançou a plataforma e foi andando entre as pessoas agitadas de saudade antecipada. Tudo o que sabia era que precisava encontrar o Grande Circo Internacional, como havia dito o grande rato gordo, que não conseguia mais subir nos trens, tão obeso.

A lona azul e vermelha rugia com as risadas dos mais de 4 mil espectadores. Astrid conseguiu entrar sem ser vista. O público ria, gargalhava, chorava de rir, mulheres faziam xixi de tanto rir. No picadeiro central, no foco dos holofotes, estava seu filho, Macarrão. Ou o “Grande Palhaço Macarrão”, como era conhecido no meio circense. Seu coração batia acelerado, mesmo para uma gata. Viu que todos riam, menos seu filho Macarrão. Sua cara de palhaço tinha uma lágrima pintada; fazia palhaçadas de palhaço sério, que tinham graça num lugar estranho da alma das pessoas, o lugar onde a gente ri de quem escorrega na casca de banana. Astrid foi invadida por uma tristeza profunda, sentindo todo o abandono que seu filho sentia. Um engano dele, mas sentido, mesmo assim. O abandono que ele imaginava viver desde o nascimento dos sete irmãos.

Astrid começou a chorar baixinho. As pessoas mais próximas notaram, e pararam de rir. Ela foi caminhando em direção ao picadeiro e, aos poucos, seu choro foi espalhando silêncio pela platéia. Quando alcançou o picadeiro, todo o circo emudecera. A banda parara de tocar. Somente se ouvia seu choro baixinho. Chegou ao centro do círculo, e abraçou tão fortemente seu filho querido que deixou sair um imenso suspiro. Macarrão percebeu que podia finalmente se desarmar, e se entregou ao colo da mãe.

Os pagantes, mesmo sem um entendimento completo, imaginaram que aquilo fazia parte do número, e foram retornando ao riso. Como uma risada puxa a outra, em pouco tempo toda a platéia gargalhava. Astrid e Macarrão riam e choravam ao mesmo tempo. A banda tocou e eles saíram sob aplausos.

Voltaram para casa. Macarrão hoje faz palhaçadas para os seus sete irmãos e a mãe, e nunca mais pensou em fugir.