Monday, April 01, 2024

Alice

 Alice

 

(ilustração: RAFAL OLBINSKI - WOMAN AND MAN)

 

            A porta do restaurante abriu-se com um ruido de molas antigas e logo se fechou atrás de seu corpo, abafando o ruido do salão pleno de pessoas que a esse ponto praticamente gritavam para serem ouvidas na empolgação da sexta-feira à noite. Alice respirou o ar úmido e frio como há tempos não se via em São Paulo. A garoa fina lembrava sua infância, e ela se aconchegou no casaco impermeável. 

Procurou pelo tato o maço de cigarros no bolso do casaco, tirou um Marlboro e o colocou entre os lábios vermelhos de batom, ao mesmo tempo em que constatava ter esquecido o isqueiro na bolsa. “Não volto lá dentro nem morta”, pensou. Estava num daqueles seus momentos em que ela nem sabia direito de onde vinham o mau humor e a ansiedade, só sabia que tinha de ficar sozinha. Sabia também que aquele namoro, cujo coadjuvante tomava vinho animadamente na mesa repleta de amigos aleatórios, não tinha muito futuro. Na verdade, não tinha futuro nenhum, não fosse a bolsa lá dentro do restaurante, pegaria um táxi ali mesmo e iria para a casa da mãe por uns dias, um lugar onde ele teria menos coragem de abordá-la. E estaria consumado o fim.

Mas um cigarro precisa ser aceso, e ela olhou em volta em busca de uma alternativa. Quase se assustou ao perceber na penumbra a figura de um homem que estivera ali a observando desde que saiu pela porta. Ao ser notado, ele ofereceu: “quer fogo”? Aproximou-se, clicando o isqueiro a gás e oferecendo a chama a uma distância não muito invasiva. Ela aceitou em silêncio, inclinando o corpo e tragando a chama sem olhar o homem nos olhos. Afastou o corpo, soltou a fumaça para cima, cruzando os braços de maneira a sustentar o cigarro de maneira casualmente arrogante, e só então pousou o olhar no seu interlocutor. Era um homem de aproximadamente 50 anos, de aparência árabe. Alice sempre tivera um certo fetiche por homens médio-orientais. Gostava de como seus músculos se definiam sobre a pele em geral macia, das suas proporções longilíneas, mas, sobretudo, amava o seu olhar, a maneira como as pálpebras superiores ficavam semicerradas, enquanto as inferiores se abriam. Devia ser alguma adaptação para a luz do deserto, ela costumava fantasiar. Na verdade, ela apreciava o ligeiro ar de superioridade e desprezo pelos outros mortais que esse olhar conferia ao seu portador. Ela devia levar esse tema na terapia, pensou. Se algum dia voltasse a fazer terapia, o que parecia improvável, àquela altura.

            “Obrigado”, ela se limitou a dizer. Puxou mais uma tragada, desviando o olhar para os carros que passavam na rua. Ficaram em silêncio por alguns instantes. “Você deu sorte”, ele disse, também olhando o trânsito. Ela o olhou inquisitivamente. “Hoje em dia ninguém mais fuma”, ele completou. “Eu também não fumo”, ela disse, voltando a olhar para o meio da rua. A última coisa de que ela precisava no momento era do assédio de um estranho aleatório. Afastou-se, medindo as juntas da calçada com seus passos erráticos. Ao virar-se de volta, pode observar melhor o homem. Era bem o seu tipo, na verdade. Só um pouco mais velho. E tinha um certo ar derrotado. Usava roupas um pouco leves e simples para o clima que fazia naquela semana. E a barba um pouco grisalha estava por fazer, o que não seria um problema estético por si só, ela gostava daquele tipo de aparência rústica; mas o contexto geral tinha um aspecto de descuido. O seu cérebro ativava todos os alertas, dizendo que se afastasse, mas ela decidiu desenvolver um pouco sua afirmação: “Hoje é uma ocasião especial. Comprei um maço depois de muitos anos.” “Espero que seja uma comemoração”, disse ele, sinceramente. “Infelizmente, não”, ela respondeu, olhando para o bico do seu scarpin. “Mas nem é tão grave. É uma questão de 48 horas”, completou. “A fase aguda das desilusões”, ele emendou. Ela levantou o olhar com surpresa: “onde você leu isso”? “Aprendi com a vida, Maria Alice”. Ela sentiu um frio no estômago.

            Nesse exato momento, seus amigos abriram estrepitosamente a porta do restaurante, invadindo a calçada com suas risadas e gritos, e Alice desviou o olhar na direção de seu futuro ex-namorado, que trazia sua bolsa e uma expressão preocupada. Quando se virou novamente para Abdul - sim, só podia ser Abdul - ele já tinha desaparecido na contraluz dos faróis dos carros que desciam a Augusta.

 

•••

 

            Quando tinha 17 anos, Alice e suas amigas costumavam ir fazer compras no Brás. Enquanto os playboys iam se divertir nos Jardins, elas achavam o máximo explorar as lojinhas de bugigangas e coisas exóticas. Tinham especial predileção por uma loja na rua Oriente que vendia todo tipo de coisa: roupas, sapatos, aviamentos, brinquedos, eletrodomésticos, doces... E guarda-chuvas. Uma lojinha do Brás como qualquer outra, aparentemente, mas atrás do balcão residia o real atrativo do estabelecimento: Abdul. 

            Ele era um imigrante sírio de uns trinta e poucos anos, sempre de camiseta branca e calças cinzas. Ele sabia o preço de todos os itens da loja de cor, nunca precisou consultar qualquer lista para vender qualquer coisa. E olhava para os clientes com aquele olhar de beduíno pelo qual as meninas suspiravam, especialmente Alice, que sabidamente se apaixonava com uma intensidade superior à dos mortais. Elas iam em bando, fingiam escolher linhas de crochet, botões, tecidos, camisetas, mas, na verdade, ficavam furtivamente observando o objeto de seu desejo coletivo, dando risadinhas e cochichando.

            Quem não gostava nada dessa atividade era Nádima, a mulher de Abdul. Sempre vestindo hijab, seus olhos enormes que pareciam ter uma maquiagem natural ficavam seguindo com um ceticismo irritado aquelas adolescentes que, para ela, não tinham nenhum respeito nem pelo seu casamento nem por si mesmas. Alice sentia muito medo dos olhos severos de Nádima.

            Mas isso não a impediu de começar a frequentar a loja sozinha, durante a semana, sob os mais diversos pretextos. Comprava guarda-chuvas, por exemplo. Era alguma coisa de que as pessoas sempre precisam. Presenteava as tias, a mãe, as primas, Alice era a fornecedora oficial de guarda-chuvas e sombrinhas da família. Gastava mais de meia hora escolhendo, olhando à distância o objeto de seu amor platônico, evitando Nádima pelo labirinto de mercadorias. A parte mais elaborada era atraí-la para o fundo da loja e chegar a tempo de ser atendida por Abdul no caixa. Então, ela aproveitava aqueles momentos para olhar os detalhes de seu corpo sob a camiseta, a maneira como ele se movia, gelar o estômago ao cruzar o seu olhar com o dele, sentir o cheiro da pele de Abdul (que pelo menos ela imaginava perceber). Saía de lá com o coração acelerado. À noite, ardia na cama pensando no seu amor, com o travesseiro entre as coxas. Alice estava decidida a conquistar Abdul. Queria que o sírio fosse seu primeiro homem, não importava que fosse casado. Ela o desejava mais que tudo no mundo, e Deus tinha que perdoar um amor assim tão intenso. 

            Mas ela não sabia muito o que fazer. Não sabia como falar com Abdul, seu desejo era simplesmente entregar-se a ele somente com o poder dos olhares, ser possuída sem palavras com a força dos seus pensamentos impuros. Enquanto isto não acontecia, ela colecionava seus guarda-chuvas. 

            Um certo dia, excedeu-se: pela manhã, comprou uma sombrinha rosa; após o almoço, um guarda-chuva xadrez. Foi então que Abdul a encarou daquela maneira pela primeira vez: “você já não tem guarda-chuvas suficientes, moça”?

            Alice encolheu-se como um gato acuado. Sentia suas bochechas queimarem, até sua testa e pescoço deveriam estar vermelhos como uma pimenta. “Eu vivo perdendo”, ela conseguiu balbuciar. Abdul digitava vagarosamente o preço do guarda-chuva na caixa registradora, sem tirar os olhos da menina. Alice se sentia despida pelo olhar do árabe, enquanto um corrimento quente umedecia sua calcinha e sua espinha se arrepiava. Ela não sabia direito se gostava daquilo; gostava, mas tinha uma sensação de medo no estômago, uma certa náusea que se misturava com o tesão que subia da sua vagina até o útero e eriçava seus mamilos que ela sentia roçando seu soutien rendado que ela escolhia pensando no seu amor. “Acho que você está procurando outra coisa, Maria Alice”, ele disse, e ela não conseguia imaginar como ele sabia seu nome. “Quanto é?”, ela perguntou, como se não soubesse. Nesse exato momento, ouviu a voz furiosa de Nádima gritando em árabe do fundo do corredor às suas costas enquanto Abdul respondia também em árabe, num tom que desagradou profundamente aos seus ouvidos. Deixou os vinte reais em cima do balcão e saiu apressada, sem olhar para trás. 

 

***

 

            Passou o final de semana na casa da sua mãe, até se acostumar à ideia de estar novamente solteira. Não era tão difícil, afinal. Quarenta e oito horas são suficientes até mesmo para se passar por uma síndrome de abstinência de heroína, ela sempre dizia. Qualquer desilusão perde muito de sua energia em um par de dias. Lucas já era uma lembrança relativamente vaga na sua mente quando chegou a segunda-feira e ela tomou o ônibus fretado para Alphaville.

            Um pensamento começou a rondar insidiosamente sua consciência, sem que ela percebesse. Enquanto ela respondia os e-mails dos seus clientes, a imagem do rosto de Abdul ia se formando lentamente na sua memória. Na hora do café, ela pensou sentir o cheiro da loja da rua Oriente emanando da sua xícara misturado ao do seu latte. No almoço, a sensação do corpo de Abdul contra o seu a tomou de chofre. O seu cliente, com quem ela estava à mesa, tentava seduzi-la com insinuações de duplo sentido e sorrisos. Ela nem estava tão irritada com isso como seria costume; sorria de volta apenas na intensidade certa para garantir que ele não desistisse de assinar o contrato; não se mostrava ofendida, mas também não encorajava o homem a seguir em frente com toda a decisão. Ela seguia com o corpo de Abdul em sua mente, e seus olhos de beduíno, o que a deixava lânguida e suavemente conformada com aquela situação.

            Durante o retorno para casa, ela adormeceu. Sonhou que montava um cavalo negro numa praia ao luar e galopavam tão velozmente q o vento, os grãos de areia em suspensão e as gotículas de água açoitavam sua pela fazendo-a arrepiar-se. Acordou sobressaltada, agora com a consciência de que precisava encontrar Abdul.

 

***

 

            A rua Oriente parecia muito diferente daquela da sua adolescência. A calçada mal tinha espaço para os pedestres, tamanha a quantidade de barracas de marreteiros. Ela foi lentamente abrindo espaço entre as pessoas que se protegiam da chuva nas marquises das lojas e nas lonas dos mascates. Seu sapato estava arruinado pelas poças d’água e de lama e ela já se arrependia profundamente daquela ideia. Mas acabou chegando à frente da loja, e hesitou por mais de um minuto. Fingiu examinar a coleção de bonés de marcas famosas na barraca em frente, enquanto espiava pela portinha. Fez menção de acender um cigarro, mas desistiu diante da multidão que se acotovelava na calçada e dava-lhe trancos esporádicos. Entrou. 

            Correu os olhos ansiosamente à procura de Abdul. No balcão, havia uma menina de uns 17 anos, magérrima e de cabelos afro reunidos num coque, escrevendo em um caderno. “Posso ajudar?”, disse a menina. “Não, obrigada, vou explorar um pouco o que você tem aqui”. A menina voltou a fazer o que estava fazendo, sem sorrir ou dizer mais. Alice andou pelos corredores. Tudo parecia ainda mais apertado e desorganizado. Agora havia muitos produtos eletrônicos vindos da china, brinquedos baratos e coloridos juntos aos tradicionais armarinhos. Ela percorria o ambiente pensando na sua adolescência quando fez uma curva e deu de cara com Nádima. Era agora uma senhora gorda e brilhosa, mas mantinha os olhos vivazes e terríveis sob o hijab. “Está procurando algo especial”, disse ela, num tom que Alice não conseguiu definir se era uma pergunta ou uma afirmação. “Obrigada, estou tentando ter uma ideia para um presente de criança bem baratinho”, improvisou. Nádima ofereceu-lhe um pianinho de plástico que tocava sozinho algumas melodias tristes num som sintetizado e lamentável. “Vinte reais”. “Isso vai enlouquecer os pais, né?”, ela tentou sorrir. Nádima não correspondeu ao sorriso. “Ele morreu”, disse Nádima. Alice enrubesceu com era de costume. “Desculpe, quem morreu?” “Você sabe muito bem quem”. “Desculpe, acho que a senhora está me confundindo com alguém...”. “Eu sei muito bem quem você é”, Nádima emendou num tom muito acima do que seria polido. A moça do balcão olhava a cena com olhos arregalados atrás dos óculos de aros pretos e redondos. “Acho que a senhora está realmente me confundindo”, tentou Alice. “Você sabe muito bem de que estou falando”, disse a síria, com olhos fuzilantes. Alice pegou o pianinho de plástico e saiu correndo em direção ao balcão. Atrás de si, Nádima falava em árabes o que certamente soava como insultos seríssimos. Pagou rapidamente e saiu da loja, respirando aliviada o cheiro podre da rua lotada de lixo e gente suja. 

            Tentou andar o mais rápido que podia, segurando o choro, mas a menos de um quarteirão, sentiu uma mão puxando levemente seu braço. “Moça, espera”, disse a menina que estava no balcão da loja. “Acho que ela tá mentindo pra senhora”. 

            Andaram dois quarteirões e subiram uma escada estreita que levava a uma cafeteria turca, uma das últimas remanescentes na rua. Ao entrarem, os homens que fumavam, tomavam café e conversavam em árabe silenciaram, e seguiram-nas com os olhos até a mesa onde se sentaram. “Posso pedir uma fatia de bolo?”, perguntou a menina. Explicou a Alice que a velha sempre dizia que Abdul tinha morrido, mas que na verdade ele estava bem vivo, segundo lhe haviam dito algumas pessoas do bairro. Teria sido uma separação turbulenta. Abdul abrira mão da loja, do dinheiro e da guarda dos filhos. Teria trabalhado em algumas lojas da mesma rua Oriente antes de desaparecer. “Mas dizem que anda por aí,” terminou a menina, já na terceira fatia. Como podia caber tanto bolo numa moça tão franzina, pensava Alice, observando o fundo do seu copo de café turco, onde na borra ela conseguia advinhar as letras M e A. Maria e Abdul? Ou somente Maria Alice?

 

***

            Todo sábado ou dia livre, Maria Alice é vista percorrendo as ruas do Brás. Entra nas lojinhas, inspeciona os produtos que hoje são muito parecidos em todas elas, e investiga quem está nos corredores e atrás do balcão. Presenteia a família e coleciona uma infinidade de guarda-chuvas.