Sunday, August 27, 2006

História do Interior (parte 2)


A casa do Sr. Mário de Almeida era típica da classe alta do interior. Naquele final da década de 70, as filhas já haviam ido à Disneyworld, por exemplo, o que, se já não constituía uma excentricidade, pelo menos era sinal de uma vida folgadamente confortável.

Mário recebera uma herança considerável de seu pai, fazendeiro de café e pecuarista que multiplicara em duas décadas o patrimônio da família várias vezes, até que os maus hábitos alimentares e a voracidade nos negócios o infartassem precocemente, aos 42 anos. Deixou Dona Cotinha, sua viúva, hábil bordadeira desprovida de qualquer iniciativa, e Mário, seu único filho, que aos 21 anos tornou-se o homem mais rico da cidade, controlando várias fazendas de café e gado nelore, uma transportadora, uma construtora e uma concessionária de caminhões. Casou-se com Ruth quando tinha 31 anos e ainda era o melhor partido da cidade, e ela 17. Ao longo de três décadas, perdeu a transportadora e a maior parte das terras em boates e cassinos do Rio de Janeiro e do mundo, além de vários negócios que enriqueceram alguns felizes oportunistas.
Naquela manhã de quinta-feira, Dona Ruth, mulher de Mário, entrou no quarto da filha Daniela como todos os dias, batendo os tamancos nos tacos sintecados e logo abrindo as cortinas, animadíssima:

- Vamos acordar, que está um dia lindo!

Daniela teve tempo de virar-se com um sorriso.

Na mesa de café da manhã, a família ruidosamente reunida, Mário lia nos jornais as boas oportunidades dos classificados, sem prestar muita atenção à conversa das três filhas e o caçula. Dona Ruth e a empregada traziam à mesa o pão, a manteiga salgada, a margarina, o doce de leite, o café passado no coador de pano e o temido leite que vinha da chácara todos os dias, com suas natas que nunca seriam coadas, o gosto azedo irremediável, mas do qual as crianças eram obrigadas a consumir quatro copos diários. Acreditava-se na família que o leite artesanal trazido da chácara era mais saudável e nutritivo do que as modalidades vendidas em sacos plásticos naquela época. Anos depois, Márcia, a filha do meio, ao cursar a faculdade de ciências biomédicas, realizou uma análise daquele leite, constatando grande contaminação por coliformes fecais e outras bactérias, o que vingou os anos de provação das crianças da família e sepultou para sempre a idéia do leite vindo da chácara em latões de alumínio.

Por um instante, Mário deu-se conta da existência das crianças e percebeu suas filhas transformadas em adolescentes atraentes, enquanto abandonavam a mesa. Pensou consigo mesmo:

- 'Tô fodido…

Na frente da casa, Dona Ruth organizava o embarque rumo ao colégio:

- Vamos, Dani, 'tá em cima da hora!

- Pode ir, mãe, que eu vou andando, não vai ter a primeira aula. Preciso gastar umas calorias.

Deu um sorriso perfeito de filha perfeita.

O carro partiu e Daniela seguiu pela calçada, acenando com uma mão para o carro que passava, enquanto com o outro braço apertava contra o peito uma prancheta e alguns cadernos. Andava devagar, cansada pela noite em claro, a cabeça doendo um pouco pela ressaca, a boca pastosa e amarga. Tinha a sensação de irrealidade que ocorre depois de uma noite sem dormir sob o efeito de substâncias antagônicas.
Após alguns quarteirões, percebeu que um maverick preto a seguia. Acelerou um pouco a marcha e dobrou a esquina. Pouco depois, o carro seguiu o mesmo caminho. Ela continuou andando apressada, e virou mais uma esquina. Na metade desse quarteirão, o carro preto a alcançou. Um homem de uns quarenta anos, olhos claros e barba crescida baixou o vidro e sorriu para ela, que resolveu parar de andar. O carro encostou junto a guia. Olhando para todos os lados, ela abriu a porta e pulou dentro do carro.

- Seu louco, minha mãe acabou de passar!

- Ei, eu 'tava vendo. 'Tô na esquina já faz uns 10 minutos. Vem cá, me dá um beijo…

- Não, sai daqui, daqui há pouco o meu pai também sai p'ra trabalhar.

- Então abaixa aqui, que ele não te vê.
João abriu o zíper da calça, forçando a nuca de Daniela com uma das mãos.

- Você é foda, mesmo, hein? Vam’bora! Corre!

O carro arrancou cantando os pneus.


Esse João era um tipo de quarenta e dois anos que ainda frequentava a saída dos colégios. Havia chegado à cidade quando tinha ainda dezoito, vindo de São Paulo. Filho único, sabedor das modas da cidade grande, imediatamente tornou-se o playboy da cidade. Ele conferia status às meninas que o namoravam, e todos os garotos queriam ser seu escudeiro.

Claro que encontrou alguma resistência, de início: os rapazes que então dominavam a noite da cidade não gostaram nada quando ele começou a aparecer demais. Na festa de 15 anos da Solange, por exemplo, ele chegou próximo à meia noite, com seus amigos todos em jaquetas de couro. Nessa época, todos estavam bastante envolvidos com suas motocicletas Honda 750 Four, que haviam mandado vir do Paraguai, e andavam em formação pela cidade, fazendo poses excêntricas e executando acelerações assustadoras. Ao penetrar na festa sem convites, seu bando causou excitação entre as meninas e um certo desconforto entre os rapazes. Quando tocaram a valsa, ele estava cuprimentando a aniversariante, e não viu mal em tomá-la para a dança. Solange, que era baixinha, dentuça e normalmente usava óculos pesados (é claro que, para a festa, não os colocara, preferindo uma lembrança turva de seus 15 anos a usar suas lentes pesadíssimas), enrubesceu lisongeada e concedeu a dança, que seria um dos momentos mais emocionantes da sua adolescência (anos depois, ela ainda queria acreditar que o casamento com João havia sido uma real possiblidade, e não uma fantasia sua). A valsa foi tomada como um desafio irreconciliável aos rapazes da cidade que, liderados por um certo Esquilo, foram reunindo um considerável exército no lado de for a do salão de festas. As meninas sugeriram que João saísse pelo porta da garagem, mas ele se recusou. Saiu com seu bando pela porta da frente, e atravessou a multidão em silêncio. Quando já estavam a meio na calçada, alguém jogou uma garrafa nas costas de um dos motoqueiros, que virou e xingou. Foi o sinal para que a confusão começasse. O grupo de João conseguiu chegar às motos e fugir, um deles ainda passou com o pneu em cima do pé de alguém.
Mais tarde, ainda naquela noite, João encontrou o Esquilo em um bar. Eram dois contra dois, que em menos de um minuto destruiram completamente o estabelecimento e foram parar na calçada. João bateu muito em Esquilo, e continuou batendo com uma corrente mesmo depois que o adversário estava já inerte, no chão. A briga somente acabou por conta de uns tiros que alguém disparou, e todos fugiram.

A fama de João espalhou-se rapidamente depois daquele episódio. A rivalidade com Esquilo cresceu durante os anos até que o inimigo apareceu morto nas pedras do rio Tibagi, jogado do alto da ponte. O crime nunca foi esclarecido.
João amadureceu sem casamento, sem trabalho fixo, sem objetivos maiores que comer as galinhas caipiras, como ele chamava as meninas da cidade. Seu envolvimento com drogas sempre foi suspeito pelas mães da cidade, que tentavam coibir o envolvimento de suas filhas com o dito cujo. Com o tempo, porém, foi sendo melhor tolerado pela sociedade, em boa parte graças à boa reputação de seu pai, médico que, influenciado pelo ambiente, acabou transformado em pecuarista, e sua mãe, oriunda de uma família quatrocentona de São Paulo, que, apesar de aparentemente oligofrênica, era com certeza a pessoa mais refinada e delicada da cidade, servindo de modelo para todas as outras senhoras.

Aos quarenta e dois anos de idade, João já havia sido incorporado à cidade como um problema administrável, um sociopata camarada. Já não era tão irresistível às moças das gerações seguintes. Havia algumas, porém, de uma certa qualidade, que ainda valorizavam a sua companhia. Daniela pertencia a esse grupo.



Foram até uma rua erma de um bairro residencial pouco ocupado. Durante o trajeto, Daniela não falou nada e não dirigiu o olhar ao motorista, que falava olhando em sua direção, às vezes cuidando da estrada.

- Fica calma, tá tudo legal… Relaxa… você acha que o tio ia te deixar na mão?

Daniela continuava séria e muda. O movimento do carro causava-lhe uma náusea leve. Ela evitava o vômito deixando o vento roçar em seu rosto, agitando seus cabelos negros; tinha experiência nesse tipo de situação. Por fim, falou:

- Não saiu nada no jornal… nem ia dar tempo, também.

- Não esquenta, ninguém viu nada. A gente não podia ter feito mais nada, a não ser se foder de graça.

A menina olhava pela janela, na direção oposta a João. Olhar para o seu rosto sorridente de olhos brilhantes piorava sua náusea.

- A gente podia ter levado pro hospital…

- Tá maluca? Com todo mundo naquele estadinho? O que você ia dizer pro médico? E pra polícia? Nem a pau!

Dirigiu em silêncio por um momento, agora sem sorrir.

- Ele já tinha apagado antes, na festa – disse, depois de alguns minutos. Ela não respondeu.

Chegaram a um lugar que parecia seguro. Não havia casas na vizinhança, somente terrenos baldios onde a mamona crescia prosperamente entre o capim, sem que ninguém cuidasse. Desligou o carro.

- Fica tranquila, que não vai dar encrenca nenhuma.

- Já deu, João… o cara tá morto. O que é que tinha naquele pó que você pegou, caralho?

- Olha aqui, calminha aí. Você sabe que eu só trabalho com farinha de primeira. Mas, sei lá, o cara devia ter algum problema, fraco do coração, sei lá… Aconteceu, pronto.

- Como você consegue ser tão frio…

- Olha aqui, só não sou é burro de cair só porque um moleque fez cagada... Ei, o que essa guria tá fazendo aí?
Uma menina da idade de Daniela saiu do meio do mato, atravessando o terreno baldio por uma trilha invisível a partir do carro.

- O que que ela tá pescoçando aqui? - gritou o João.
Daniela reconheceu, nesse instante, a colega de classe, que olhou o casal de relance através do pára-brisa.

- Desencana, é a Flávia, é da minha classe, ela é na dela...

- Por que parou pra olhar, a puta?
João metia medo em Daniela quando ficava naquele estado agressivo. Daniela tentava controla-lo:

- Calma, calma, ela nem prestou atenção, a gente é que tava bem no caminho dela…
João continuou xingando muito, até que a menina pediu-lhe que a levasse à escola, que a segunda aula começaria em 15 minutos. Ele foi resmungando, ela tomando vento no rosto.
Chegando a alguns quartteirões do fundo do colégio, a menina pediu que parasse para ela saltar. João segurou na sua mão.

- Espera que eu vou te dar um presentinho p'ra alegrar o dia.
Pegou uma caixa de fósforos e, de dentro dela, tirou um pedaço minúsculo de papel de filtro, com o desenho da Betty Boop.

- Um docinho pro seu recreio.

- Nem tô a fim, Johnny. Tô no maior bode…

Mas pegou o papelzinho de ácido e o enfiou num envelope colado dentro da agenda, que fechava com cadeado. Beijou o
outro na boca, e saiu do carro apressada. Ele ainda a seguiu com os olhos até que virasse a esquina, medindo suas nádegas firmes de adolescente oscilando dentro das calças Soft-Machine.
Enquanto esperava soar o sinal da segunda aula, Daniela fumava um Marlboro encostada na parede do vestíbulo do corredor, junto com os outros alunos atrasados. Nesse momento, chegou Flávia, a menina que os havia flagrado no terreno baldio, e juntou-se ao grupo silente. Não se cumprimentaram. Daniela observava a colega através da fumaça que soltava em anéis concêntricos. Era conhecida em todo colégio pela habilidade com que realizava essa manobra. Era também conhecida como uma das meninas mais atraentes e sexualmente ativas da escola, sendo desejada por todos os meninos e por grande parte do corpo docente. Soou o sinal. Daniela esmagou a bituca com o salto da bota.

No caminho até a classe, que ficava ao fim de quatro rampas sucessivas, Daniela teve tempo de puxar o assunto com a outra.

- Oi, e aí? Você mora ali no Quebec, né?

- Oi. Moro sim.

- Olha, eu queria te pedir uma coisa: não espalha que você me viu hoje cedo lá no carro…

- Ih, nem encana, pode deixar, fica sossegada.

E foram andando rumo à matemática, falando sobre homens.


A manhã custou a passar, as aulas vinham lentas e incompreensíveis. Daniela resistia em usar a dose de ácido que tinha na agenda, julgando que ia precisar de suas faculdades mentais na maior integridade possível. Na hora do intervalo, no entanto, todo o mundo já sabia da notícia: Vinícius havia sido encontrado morto na porta da igreja. A polícia procurava por um Opala preto. Daniela foi ao banheiro e ingeriu Betty Boop. Cancelaram-se as aulas após o intervalo, já que poucos alunos retornaram. Daniela foi para casa com sua nova amiga Flávia. Passaram algumas horas olhando fotos antigas, até que Flávia teve um ataque de ansiedade inexplicável, e foi embora correndo. Daniela, que não estava em condições de entender muita coisa, trancou-se no quarto até a noite, vendo bichos estranhos na penumbra.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Nossa! tô gostando da história.
Então, o João é o culpado da Laura e Beatriz brigarem com o padre.
Continua!!!

3:45 PM  
Anonymous Anonymous said...

to bem curioso.

3:46 PM  
Anonymous Anonymous said...

Continuar?! Pra mim está perfeito. Se continuar, vira novela! rs Sério!!! :P

2:36 AM  
Anonymous Anonymous said...

Tá, continua que sempre é bom ler o que você escreve!

2:39 AM  

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