Wednesday, August 23, 2006

História do Interior (parte 1)


As irmãs carolas Laura e Beatriz costumavam a sair de casa todas as madrugadas, garantindo um quórum mínimo para a missa das seis, mesmo em dias como aquela quinta-feira, em que a grama dos jardins estava branca de geada e a temperatura aproximava-se do zero.
Estranharam o Maverick preto virando a esquina, num horário em que habitualmente os seus passos ecoavam solitários pelos paralelepípedos decadentes das ruas antigas da cidade.
Ao contornarem a esquina da igreja Matriz, ainda puderam ver o carro arrancando, deixando para trás um vulto deitado na calçada em frente às escadas. Laura apertou com força o braço de Beatriz, e apressaram o passo numa mudez espantada.
Descobriram o cadáver já enrijecido de um garoto com o rosto meio coberto pela jaqueta de couro, os lábios azuis entreabertos, emoldurados por um bigodinho ainda incipiente.
Laura rezava para seus santos e Beatriz gritava para que o padre acodisse.


Correu gritando igreja adentro. Entrou na sacristia com o desembaraço de assídua frequentadora, mas não encontrou o padre. Voltou correndo o quanto podia até a calçada:

- Vamos! Temos que tirar o carro da garagem!


O carro era um Chevette vermelho que somente era posto em movimento nas ocasiões extremas. Até alguns anos antes, Beatriz ainda saía com o vermelhinho regularmente a fim de fazer as compras mensais no supermercado. Filas enormes de motoristas impacientes formavam-se atrás da destemida septuagenária motorizada, que enfim decidiu desistir das suas saídas, a pedido do prefeito.

Apesar do carro estar parado há meses, o motor funcionou imediatamente, graças ao hábito que Beatriz cultivava: todas as manhãs, após a missa, deixava que o motor funcionasse alguns minutos, justificativa perfeita para que pudesse ouvir seu programa de rádio favorito, que juntava o jornalismo policial recheado pelas reconstituições de crimes com reportagens médicas financiadas por panacéias charlatanescas.

Às duas senhoras não ocorreu telefonar à polícia ou ao hospital, ou mesmo pedir ajuda a algum vizinho. Imaginavam-se chegando à Santa Casa com o pobre defunto juvenil, misericordiosas, enérgicas e triunfais.

Ao retornarem à igreja, deram-se conta de que teriam de carregar o corpo para dentro do veículo. Tentaram arrastá-lo, sem sucesso. Como Laura começava a sentir palpitações, entraram novamente no carro e foram recorrer ao Seu Arlindo, antigo capataz da fazenda de café que ainda àqueles dias prestava às duas senhoras pequenos serviços braçais, apesar de ter somente um dos braços, ironicamente. Nos idos da fazenda, havia um elevador no silo de café, que levava os grãos a um andar superior, que emperrava com regularidade. Num desses episódios, Arlindo foi empurrar as correntes do mecanismo de um lado, enquanto um outro funcionário puxava as tais correntes do outro lado. Quando as engrenagens se soltaram, Arlindo foi puxado para dentro do mecanismo. A mão e boa parte de seu atebraço esquerdo foram perdidos no acidente. Apesar disso, continuou sendo uma pessoa extremamente prestativa. Com o braço direito e o que lhe restava do esquerdo, podia levantar mais peso do que a maioria dos homens. Mesmo a viola não deixou de ser uma de suas principais paixões: Arlindo aprendeu a fazer as posições com a mão direita e a percutir o ritmo com uma palheta presa a uma espécie de pulseira, que ele colocava no cotoco.

Àquela hora a casa de Seu Arlindo já estava acesa. Reconhecendo o som do Chevette vermelho, já estava à varanda quando Laura conseguiu estacionar.

- Vamos, Seu Arlindo, corra que é caso de morte!

Arlindo saltou para o banco de trás, enquanto Laura guiava cuidadosamente e Beatriz relatava a assombrosa ocorrência.





Chegaram novamente à igreja com o Sol já dourando as escadas. Surpreendentemente, o cadáver havia desaparecido.

- Minha mãe santíssima! – benzeu-se Laura.

Com muito jeito, Seu Arlindo sugeriu que talvez o defunto talvez não estivesse morto, esses meninos que não sabem beber às vezes vão parar na sarjeta, mesmo, mas de uma hora para a outra acordam…

- Seu Arlindo, então eu não sei reconhecer um defunto? O coitado estava ali durinho, com o rosto coberto, bem morto, sim, senhor…

As palpitações retornaram, e Laura começou a sentir desconforto. Beatriz reconheceu imediatamente os sintomas.

- Laura, acho melhor irmos até o hospital. Você está branca que nem uma cera!

- Nem pensar! Precisamos saber o que aconteceu com o nosso menino.

Aquilo não podia ficar assim. Laura sentia uma excitação que desconhecia desde os tempos de infância, quando a aventura fazia parte da sua vida rural. Já na casa dos setenta anos, tinha o humor azedo das viúvas virgens. Perdera o marido aos 19 anos, um ano após o casamento, vítima de uma picada de urutu-cruzeiro, no meio do pasto. É claro que a união se consumara fisicamente, mas não chegaram a ter filhos, nem tampouco chegaram a compartilhar verdadeira intimidade afetiva, em tão breve convívio. Pelo, contrário: Laura temia as noites em que seu marido, um homem de poucas palavras e gestos grosseiros, decidia procurá-la no seu lado da cama para saciar-se rapidamente e então ressonar até a madrugada, quando levantava antes da primeira luz e, depois do café preto, saía a cavalo para verificar pessoalmente todos os detalhes da administração da propriedade. Quando enviuvou, Laura sentiu quase um alívio; em todo caso, mesmo após observar o luto rigoroso que os modos da época exigiam, nunca mais considerou nenhum pretendente. E não foram poucos, visto que fora uma moça que poderia ter sido considerada bonita, apesar de uma compleição um tanto frágil: tinha tez muito branca, como a de uma boneca, lábios borrados de vermelho como se tivesse acabado de chupar picolé de groselha, sempre, e uns olhos negros muito grandes e abertos. E, principalmente, tinha um dote muito atraente, vastas fazendas de café por todo o Paraná e São Paulo. Mas privou qualquer homem tanto de si quanto de sua fortuna, preferindo envelhecer dedicada à caridade e à igreja. Existência morna, sem grandes extravagâncias, agruras ou aventuras. Até aquela manhã. Sentia calores estranhos e o cérebro reativando regiões há muito postas em repouso relativo pela esclerose e pelas isquemias transitórias. Demorou a admitir que era muita excitação para ela.

Mas acabaram convencendo-a. Seu Arlindo tomou a direção e rumaram à Santa Casa de Misericórida.

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Subiram a rampa do pronto socorro ameaçando atropelar alguém.

- Acode, acode!

Laura foi posta numa cadeira de rodas, sob protesto. Ao deslizarem Pronto-Socorro adentro, deram com o padre Geraldo cercado de gente, no átrio. Policiais, os repórter da rádio, o correspondente do jornal de Curitiba, curiosos, todos rodeavam o padre, que contava como havia encontrado o corpo do guri, à porta da igreja, já azulado. Fazia um sorriso mal dissumulado e às vezes gesticulava para contar melhor como tinha conseguido arrastar o corpo até o Fusca da congregação.

As duas irmãs olhavam à distância, em silêncio. Depois de medida a pressão de Laura, retiraram-se rapidamente:

- Vamos, Seu Arlindo, que isso aqui está um tumulto.

Cumprimentaram o padre friamente, com um aceno de cabeça.

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No decorrer dos anos, o altar que Beatriz devotava a Nossa Senhora Aparecida foi ganhando importância na cidade. As irmãs organizavam novenas que chegavam a atrair comadres de cidades vizinhas. Seus quitutes eram comentados por fiéis de toda a parte. Começaram a realizar festas em benefício do orfanato que em nada deviam às quermesses da paróquia.

Nunca mais pisaram na igreja, alegando problemas de saúde.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

A Morte... Mais uma vez ela, né?...

1:47 PM  
Anonymous Anonymous said...

Na década perdida, você provavelmente lia. O resultado é que escreve muito bem.
Divaga, como é gostoso, mas sem perder o fio. Fiquei curioso.
O do cacete, mesmo, considerando seu talento, é anexar trilha para os textos. Já
pensou?

12:08 PM  
Anonymous Anonymous said...

Não sou chegada a história de beatas, padres, igrejas... mas essa me deixou instigada.

*A Olga apertou os braços da Beatriz no começo da história e deu pista :P
Ah,tá! ela tá na 2ª parte (rs).

4:01 PM  
Anonymous Anonymous said...

Foi eu que escrevi aí em cima

4:02 PM  

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