Thursday, August 10, 2006


(ilustração: Francis Bacon, "Untitled", 1944)

O texto a seguir é baseado num sonho que tive. Provavelmente, muitas pessoas vão pensar que eu preciso de ajuda, mas achei a história boa.





O Risoto


Quando ele entrou em meu escritório, sua figura longelínea e expressão aguda pareceram-me familiares, de um modo perturbador, inexplicável. Tinha a propriedade de fazer com que as pessoas falassem mais do gostariam, que se expusessem de uma maneira mais pessoal à que normalmente se permitiriam. Por isso, por várias vezes flagrei-me contando tudo a meu respeito, enquanto que o homem assentia com um sorriso meio difícil de interpretar.

Ao fim de uma hora de entrevista, sabia dele pouco mais que o nome - John Carlyle - e que era um artista plástico americano, supostamente de alguma importância em Nova Iorque. Queria que eu colaborasse com uma instalação de sua autoria, compondo uma música que serviria como trilha sonora para a obra. Não consegui extrair maiores informações nesse primeiro encontro, provavelmente pelo tanto que falei e o pouco que ouvi.


***


Resolvi pesquisar a respeito do meu cliente prospectivo. Fui até a casa de Beatrice, jornalista de caderno cultural e minha referência no mundo das "artes decorativas", como ela gostava de dizer. Apesar de já ser o fim da tarde, ela acabava de acordar, e tentava se recobrar da ressaca que a festinha da noite anterior proporcionara. Ao mencionar o nome do sujeito, ela recobrou imediatamente suas faculdades:

- Você conheceu "o" John Carlyle?
- Humm, eu não sabia que ele era uma celebridade...
- Mas ele é! Não acredito que você nunca ouviu falar nele! Em que planeta você mora?

Admito ser meio desligado, mas achei estranho que não tivesse a mínima idéia de uma pessoa de tão aparente fama.

- O cara foi um dos artistas mais importantes da era "pop", causou o maior furor no fim dos anos sessenta. Diziam que ele estava morando na Bahia desde há muito tempo, mas nunca ninguém viu. Você tem que me arranjar um encontro com ele!

Saí de lá aproveitando um acesso de náusea da minha amiga, e fui para casa ainda mais intrigado.


***


À noite, fiz uma busca pela internet e encontrei vinte e uma páginas que faziam referência ao nome do artista. Realmente, ele andava sumido desde meados da década de setenta. Era considerado um gênio, por alguns, ou maldito, pela maioria, o mesmo estereótipo de sempre. Apesar de pertencer à geração que inventara a pop-art, criara seu próprio e estranho caminho, unindo sua arte à psicanálise e às viagens com ácido. Criara um método segundo o qual conseguiria prever as ações de uma determinada pessoa mediante a observação escrupulosa de seu comportamento, estando sob o efeito do LSD.

Numa página dedicada mais propriamente às ciências ocultas do que às artes plásticas, havia uma descrição bastante obscura do que teria sido sua última obra: segundo o relato, ele teria observado durante nove meses uma adolescente americana e concluíra que ela iria matar uma criança de 5 anos, sua vizinha. Teria se aproximado e seguido a adolescente durante mais sete meses, até a suposta consumação do crime. Documentou tudo com fotos de técnica duvidosa e uma crueza aviltante. Reconstituiu a cena do crime e convidou a adolescente para um jantar. Obteve mais fotos.

Num outro "site", dedicado principalmente ao sado-masoquismo e a fetiches bizarros, diziam que o artista havia recuperado o corpo da vítima, que Jeniffer - este era o nome da adolescente assassina - deixara abandonado em um barranco e…

Era horrível demais para ser verdade. Segundo o site, Carlyle promoveu um ritual canibalístico, onde a assassina comeu a carne do corpo da vítima sem que soubesse.

Aquilo era demais pra mim, mesmo considerando o lado mórbido da minha personlidade que o anonimato da internet deixava expressar-se. Mesmo que fosse mentira, uma lenda urbana ou invenção da escória meio demenciada que escreve nesses sites bizarros, aquela história causou-me uma repugnância incontrolável e um medo profundo…
Desliguei o computador e resolvi evitar tudo o que poderia dizer respeito a esse homem.


***


Tive um sonho estranho, nessa mesma noite, em que um mendigo demente, desse tipo nudista, que anda pelas ruas falando coisas desconexas, atravessava a rua dançando na frente do meu carro e, com um caco de espelho, refletia a luz do Sol nos meus olhos.


***


Patrícia ligou-me no celular, quando eu já estava a meio caminho de casa. Estavam no Spot, ela, sua mãe e uma amiga, para jantar.
O trânsito da Av. Paulista fez com que eu chegasse alguns drinques depois do esperado. As duas senhoras, a essa altura, já chamavam a atenção de todo o salão para suas gargalhadas e seus brindes de coquetel de champanhe, observadas por Patrícia, entre constrangida e enxaquecosa.
Ao passarmos do bar à mesa, John Carlyle acenou para mim, de um canto distante. As duas senhoras assanharam-se em perguntar quem era, mas eu não conseguia lembrar-me de quem se tratava, pois havia vários anos desde nossa entrevista.
No momento em que o garçon nos ilustrava sobre os especiais do dia, um outro trouxe à nossa mesa uma badeja com novos drinques, oferecimento do misterioso homem que me acenara.

- Que gentileza!

- Ele é um homem educado, Dimi. Convida pra sentar com a gente...

Eu não fiz a menor idéia de quem se tratava até Carlyle sentar-se à minha frente. Olhou-me com seu sorriso irritantemente seguro, e num instante senti meu estômago revirar como na noite em que descobri os aspectos bizarros de suas atividades. Ao lado de Carlyle, sentou-se uma menina muito jovem que - não havíamos notado - fazia companhia ao odioso artista. Essa garota, loura e franzina, jamais levantou os olhos em nossa direção. Escondia-se atrás de uma franja longa, através da qual sua maquiagem intrigantemente exagerada fazia-se notar.

O que se passou a seguir não faz parte de um mundo conhecido. Tudo parece muito confuso, e o entendimento que tive sobre o que ocorreu é mais baseado em sensações do que na memória de fatos objetivos. Veremos se consigo descrever.
Durante toda sua permanência na mesa, a menina olhou para baixo, e não emitiu palavra. Não que alguém se importasse com isso, além de mim. De certa maneira, era como se ela não estivesse ali, já que não fora apresentada a ninguém, e ninguém fizera questão de falar com ela. Algo similar passou a ocorrer comigo, a partir do momento em que Carlyle monopolizou a atenção das outras mulheres da mesa. Eu procurava encarar a menina, ela não dava sinais de que percebia a minha insistência, somente olhava para baixo, inerme. Mesmo assim, eu tinha a sensação de reconhecê-la. Em um dado momento, lembrei-me: era a assassina juvenil de Carlyle, ainda com a aparência que tinha há quase trinta anos, e isso não me surpreendeu, por alguma razão, como também não me surpreendeu a chegada de nossa refeição, em bandejas cobertas; ao descobrirem-se os pratos, vi à minha frente um risoto esverdeado; enquanto todos riam sonoramente, provei do risoto, senti seu gosto incompreensível e tive certeza de tratar-se da mesma refeição canibal que Carlyle servira à moça em sua famosa instalação; fui até seu ouvido, e perguntei:

- Por que você guardou isso para mim, durante tanto tempo?

Sem desviar os olhos na minha direção, ele respondeu, sério e sereno:

- Cuida de teu hálito, daqui por diante.

Nesse instante, tive a compreensão de uma realidade inexprimível: eu era todas aquelas pessoas reunidas, Carlyle, a menina assassina, a criança morta.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Você é tudo de bom, isso sim! E eu adoro os seus textos! Todos! Você é muito inteligente. Consegue escrever sobre um Hannibal Lecter, uma viagem no tempo e um inseto psicótico (isto me lembrou um certo ex)com a mesma destreza.
Admirável...

10:16 PM  

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