(ilustração: croqui de Zuzu Angel, 1970)
Zuzu e a Ditadura
O país muitas vezes resiste em manter viva a memória da barbárie que foi o período de repressão que vivemos nos anos 60 e 70. Compreensivelmente, a gente quer esquecer o absurdo de um Estado governando com a "clava forte"; o terror da prisão, tortura e morte por motivos ideológicos; o silêncio dos homens e das idéias pela coação e o medo. Mas é preciso manter viva a lembrança do Inferno para que possamos ter percepção da Liberdade e da sua urgência.
Por isso, quando surge um filme como "Zuzu Angel", tem que prestar atenção. Tem que dar importância. Mesmo se não fosse o bom filme que é.
Lembro-me vagamente da Zuzu. Quando morreu, em 1976, vi muitos intelectuais e artistas ultrajados, mas ninguém podia dizer claramente a razão do ultraje. Que era: Zuzu fora morta pela repressão ao final de sua luta por conseguir encontrar o corpo do filho Stuart, ativista político preso e morto no DOI-CODI em 1972, parece. Em Londrina, naquela época, tínhamos pouca noção da repressão. Sempre a TV Globo tentava mostrar algo que se referisse a Zuzu. No Jornal Hoje, havia uns especiais de moda em que lembravam dela. Eu não sabia direito quem era, e estranhava a importância póstuma que davam a essa estilista. Não tinha idéia da tragédia da vida dessa mulher. Sua filha, Hildegard, era da Globo. Era jornalista e atriz, e aparecia na novela Dancing Days como ela mesma. Isso em 78, dois anos após a morte da mãe, a dramaturgia da Globo ajudando a dar o destaque ao caso. Hoje, Hilde é colunista d'O Globo, e tem gente que mete muito o pau nela.
Em Londrina era assim: nas aulas de Educação Moral e Cívica da escola pública, eu aprendia que em 1964 havia ocorrido uma "revolução". Os termos "golpe militar" e "ditadura" nunca foram ouvidos. O Médici era um presidente de olhos profundamente azuis que gostava de futebol. Na TV, a propaganda oficial dizia que o Brasil era um país que ia "pra frente". "Ou, ou, ou, ou, ou...". (Agora me atino de um possível sentido obscuro dessa vocalização, quem for da época vai entender.) As pessoas tentavam levar uma vida pacata e apolítica. Algumas por medo, outras por convicção ou egoísmo.
Houve uma vez em que deixei meu pai apavorado. Quando eu tinha uns 10 ou 11 anos, exatamente na época dessas barbaridades, fazia inglês numa classe de adultos, e o professor era um mórmon de Utah, o Lyle. Numa determinada aula, discutiu-se política trabalhista, por algum motivo, e Lyle discorreu sobre o sistema de "welfare" americano, comparando com o sistema soviético de seguro desemprego. Sua posição era obviamente pró-america, mas não deixou de falar coisas sobre o comunismo soviético que eu achei interessantes e novas. Um certo dia, pareceu-me pertinente citar essas informações numa redação da escola. Por sorte, talvez, minha mãe lia todas as minhas redações, e achou melhor mostrar essa ao meu pai. Ele leu e começou a gritar, dizendo que iríamos todos presos, que iria à escola de inglês espinafrar o professor, onde já se viu, expor uma criança a esse tipo de informação... Foi a primeira vez em que percebi o estado de censura e medo em que vivíamos. Nunca me passara pela cabeça a possibilidade de que minhas idéias, ou de qualquer outra pessoa, fossem passíveis de proibição. Eu chorei muito, com medo de que meu pai fosse preso por causa da redação. Ou que ele fosse até a
escola de inglês e acabasse com o respeito que eu gozava junto aos meus colegas e professores. Rasguei a redação, e escrevi alguma outra coisa sem qualquer tom político. Naquela noite também ouvi pela primeira vez as palavras, "subversão", "doutrinação", "DOI-CODI". Meu pai era médico, e dava aulas de Endocrinologia na Universidade Estadual de Londrina. Muitos anos depois fiquei sabendo que, naquela época, vários professores sumiram, mesmo por pouca coisa.
O Dadado era meu melhor amigo. O Ica, irmão dele, era o melhor amigo do meu irmão. Eles tinham um monte de irmãs mais velhas, umas mulheronas, algumas já na faculdade, que eu cobiçava muito, platonicamente. Mas esse não é o ponto: um dia, o Dadado me chamou num canto, na casa dele, e mostrou um jornalzinho que ele tinha achado nas coisas de uma das irmãs. Acho que era um exemplar do Pasquim. Por ser clandestino, o jornalzinho permitia-se a publicar coisas que seriam censuráveis não necessáriamente por razões políticas. O que meu amigo queria mostrar era uma sequência de fotos que mostrava uns moradores de rua transando. "Transando" é um eufemismo barato: mostrava um mendigo chupando uma mulherzinha em plena calçada. Aí chegava outro mendigo, brigava com o primeiro, e supostamente ganhava o privilégio de continuar chupando a moça. Eu achei muito interessante o sorrizinho dela, lembro até hoje. Na verdade, eu nem sabia que aquilo lá era uma coisa desejável. Pareceu meio nojento. Mas havia também uma outra matéria, com fotos de tanques dispersando uma manifestação na Cinelândia. Estudantes sendo presos e espancados a cacetete. Eu nunca tinha houvido falar daquelas coisas. Naquela época eu já havia aprendido a ficar na moita, em relação àqueles assuntos. Não comentei nada em casa, mas aprendi que havia coisas violentas acontecendo em outros cantos do país de que a gente não tinha a menor notícia.
A censura era uma coisa insana. Os milicos não se limitavam a censurar as obras e reportagens de cunho político, mas riscavam do mapa, também, peças que atentavam contra seu senso de decoro. Não se podia falar palavrão. Revista de mulher pelada, então, nem se fala. Minha puberdade foi abastecida pelas "Status" que só podiam mostrar peitinho. Isso talvez tenha estimulado minha criatividade erótica: hoje eu sou capaz de despir mentalmente uma mulher com um olhar de relance. Gesthalt.
Quando eu me mudei para São Paulo, em 1981, comecei a ouvir falar em "abertura". Um monte de exilados políticos voltava ao país, gente de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas que a mídia tratava com intimidade. Fundou-se o PT. Em 82 eu entrei na Escola Paulista de Medicina que, por ser federal, tinha um escritório do SNI, ainda, com um coronel que andava sempre de óculos Ray-Ban e fingia ser discreto. Na minha turma tinha até um agente infiltrado, o "Pom-Pom", que todo mundo sabia que era informante. Quando a gente fazia greve, eles ficavam fotografando a gente com uma teleobjetiva, lá da janela do escritório deles. Uma vez, eu e uns amigos fizemos um "bundão" pra foto. Espero que tenha ido pra minha ficha no SNI. Enfim, já eram tempos mais relaxados, em que o Figueiredo, meio embaraçado, promovia a desarticulação do sistema de informação e repressão da ditadura. Fizemos campanha na primeira eleição para governador desde o golpe, participamos do "Diretas Já"... Éramos todos socialistas de coração, mas não sentíamos muito risco nisso. Acho que foi o Paulo Francis quem disse que quem não é comunista aos 20 anos não tem coração. E quem continua socialista aos 40, não tem cérebro.
Em meio a tudo isso, fiquei sabendo de atrocidades cometidas pelo regime autoritário com gente muito próxima, que vinha de famílias socialistas. Havia fofocas sobre professores colaboracionistas. Sobre um dos professores de Medicina Legal ter sido atuante nas sessões de tortura do CODI. Por essa época, a ditadura e a repressão dos anos 70 ficou muito mais clara, para mim, mesmo que retrospectivamente.
Imagino a tragédia de Zuzu Angel como sendo a claustrofobia transformada em vida, uma perseguição por algozes sem rostos definidos, por assassinos que extinguiram o que há de mais querido e frágil na vida de uma mãe, a prole. Zuzu deve ter sido uma pessoa especialíssima, que conseguiu lidar com essa claustrofobia de uma maneira ruidosa, extrovertida, denunciante, corajosa. Mesmo que dissesse, como dizia: "corajoso foi meu filho, eu tenho somente legitimidade". Sua história é para ser contada a todos, por muitas gerações, para que não nos esqueçamos do horror.
Além dessa história trágica e magnífica, uma das melhores coisas desse filme é a Patrícia Pillar, que inunda a tela consigo sem fazer muita força. Uma interpretação de cinema, como nunca vi de um ator brasileiro, talvez, sem os excessos do teatro nem os estereótipos da tv. Leandra Leal também tem uma energia muito boa, e também o Daniel de Oliveira. O restante das atuações é meia-boca. O filme tem seus problemas. Mas eu tenho que relativizá-los, já que me fez arrepiar e chorar por duas horas.
1 Comments:
Olha, eu já vi alguns filmes que abordam a ditadura no Brasil, mas esse Zuzu Angel... te falar... me deixou meio passada... Sabe aquela coisa do filme acabar e você não conseguir se mexer da cadeira?
Anos 70 é um período que me fascina. Tudo que diz respeito àquela época me envolve de uma maneira que não sei explicar. Às vezes penso que queria ter vivido nela (ou ela), em outras me acho meio louca por isso...
Sei lá...
O filme mexeu comigo, concordo que tem mesmo que ter esse tipo de coisa "pra fazer a gente lembrar" e, putz, Patrícia Pillar arrebentou!
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