Saturday, August 19, 2006

Saudades dos Meus Monstros e Vilões

(ilustração: Goya, "Perro en la Arena", 1821)

Um dos maiores desafios de ser pai é aturar os vídeos e programas infantis. No final do dia, quando chego em casa, é hora da Bebel assistir tv e relaxar. Afinal, ela teve um dia duro, envolvendo muito escorregador, trepa-trepa, balanço e areia. Aí eu chego e fico lá, assistindo com ela. Tem dias em que consigo furtivamente colocar o ipod e abrir um livro. Se ela percebe, lança sobre mim um olhar de censura, tira os fones dos meus ouvidos e deita sobre o livro. Como eu posso não me interessar pelo Barney??

O Barney é a atual paixão de Bebel. Pra quem não tem filho: trata-se de um tiranossauro camarada, meio gay, roxo e com uma dentição prognata de PVC. Passa no Discovery Kids, diariamente, e ainda tem uns dvds e cds como golpes de misericórdia. Bebel vê o dvd do Barney todos as noites, antes de dormir. Já houve a época do Cocoricó, do Elmo, da Xuxa, atualmente a tortura é o Barney. Não sei o que irrita mais, se é o dinossauro ou as crianças que o acompanham. Todas querendo ser pop stars infantis, fazem tudo demais: sorriem demais, gritam demais, são afetivos demais, dançam demais... Tem um moleque mais velho com cara de latino que é especialmente abominável. Já é crescidinho, é condescendente com os pirralhos mais jovens, e se acha! No dvd do Elmo tem também umas ciranças irritantes, um ruivinho CDF que faz as coreografias também com um rigor de menino-prodígio. Deve acreditar ser tão fofo quanto ouve dizer que é.

Mais irritante ainda que os pentelhos-prodígio são os roteiros: todo mundo é bonzinho! O Barney parece uma tia velha com os trejeitos do Dr. Smith de "Perdidos no Espaço". Mas bonzinho. O Dr. Smith era uma bicha má, fazia intrigas, sua ganância e egoísmo sempre acabava em encrenca. Naquele planeta hostil, provavelmente seria sacrificado pelo resto da tripulação, cedo ou tarde. Mas no Barney não tem vilão. Até o Lobo Mau é bonzinho! Barney ensina-o a soprar para encher um balão, ao invés de derrubar a casa dos porquinhos. Que horror... perdeu toda a graça. E, também, como as crianças vão aprender que a casa do Prático é mais segura porque ele é um cara mais trabalhador? Não vão. Depois de encher o balão, o lobo diz que tem fome, e Barney oferece-lhe um sanduíche de manteiga de amendoim. No "Xuxa Só Para Baxinhos 2" também há um lobo vegetariano, que quer comer as "frutinhas" da Chapeuzinho.

Esses roteiros são americanos, e americanos tendem sempre à correção política. O americano médio, que mora em Ohio, tem 1,7 filhos e come junk-food diariamente, não gosta de ver o Lobo Mau comer a vovozinha, metaforicamente. As histórias infantis clássicas são fruto da idade média européia, e são basicamente histórias de horror. Os contos de fada sempre têm um antagonista terrível e poderoso, para que o herói obtenha uma vitória que significa alguma coisa, eticamente. Quando o Barney dá o sanduíche ao lobão, tira qualquer possibilidade de um enfrentamento digno entre protagonista e antagonista. E a história fica inócua e chata, com todos se "amando" muito, sem começo, nem meio, nem fim... um amor mole e sem risco.

Os contos de fada mexem com coisas muito primitivas do ser humano, como medo, agressividade, amor, ódio, morte, erotismo. Usam uma liguagem simbólica que imprime profundamente no inconsciente das pessoas. A Marilena Chauí, apesar de hoje estar passando por essa fase miserável e incongruente, fez aquela bonita análise sobre esse simbolismo, nos anos 80. Os americanos de hoje em dia não lidam bem com o conceito de inconsciente, têm a fantasia de que podem lidar com o mundo de uma maneira plenamente racional. Acreditam muito em "aconselhamento" psicológico, mais do que em psicoterapia, enxovalham o Freud o quanto podem, sempre que podem. Quando eu fazia faculdade em Boston, tive uma aula em que iríamos analisar um filme do Hitchcock, "Quando Fala o Coração", em que ele se aventura pelo mundo do inconsciente e da psicanálise - um roteiro tosco e pueril, é preciso dizer. Mas o filme fala do incosciente, de pacientes psiquiátricos, tem cenários do Salvador Dali para retratar os sonhos do personagem, é um filme sobre a mente e a neurose. O professor, então, antes de iniciar a projeção, fez uma preleção onde ele disse para que relativizássemos o que veríamos; que o filme fora produzido numa época em que ainda se acreditava nas idéias do Freud, antes que se verificasse que essa história de incosciente é, na verdade, "um meio de vida para um punhado de espertalhões em Park Avenue"...

Talvez o inconsciente não seja mesmo assunto para americano. Incompatibilidade cultural. Como sexo livre não é assunto pra muçulmano fundamentalista. Psicanálise, como se diz de doenças de fundo genético, é pra quem pode, não pra quem quer. Mas não precisavam acabar com o antagonismo entre o Lobão e a Chapeuzinho. Isso eu acho demais. Um abuso. Esquecem-se da violência que há no coração de crianças pequenas. Ontem mesmo, a Bebel foi a uma festa de aniversário, e fez muito sucesso, com sua mini-saia Burbery's que a vovó deu de presente. Num certo momento, um menino e uma menina, mais velhos, cercaram a coitada e começaram a empurrar. Ela caiu de boca no chão, encheu de areia, os meninos continuaram a segurar sua cabeça, seu rosto encostado no chão. A Patrícia saiu correndo, deu um esporro sério nos garotos, em frente aos pais condescendentes.

O que você acharia se um cara bem mais alto que você, com o dobro do peso, o perseguisse pela rua, passasse uma rasteira em você e sentasse em cima do seu peito, depois saísse andando calmamente, furtando seus pertences mais valiosos? Isso aconteceu comigo quando eu tinha uns 6 anos. O Bolão roubou todas as minhas figurinhas do álbum de 1970, em plena luz do dia, e saiu andando calmamente pelo pátio do Grupo Escolar Hugo Simas. Ninguém levantou a voz ou a mão para defender a legalidade, naquele momento. O Bolão era filho de uma família rica de Londrina, eu cheguei a ser amigo de dois de seus irmãos. Mas o cara era um garoto-problema. Só arranjava confusão, desde uma idade muito precoce. Depois de dar muita cabeçada, achou-se, dizem. Foi estudar gastronomia, disseram que hoje é chef no Emiliano. Preciso ir lá, um dia. Descobrir uma barata na minha sopa e chamar a vigilância sanitária...

Pois é. Também tenho ódio no coração. Todo mundo tem. Esse negócio de se esconder do demo não dá certo. Ganhei de dia dos pais a obra completa do Guimarães Rosa. No Grande Sertão:..., ele fala uma frase muito bacana: "quem muito se evita, se convive".
No contexto, fala sobre um camarada que evitava o demo e ouvia as vozes dele nas capoeiras, a despeito dos cuidados. Rosa vai querer dizer que o Deus e o Diabo estão em todas as coisas, estão dentro das pessoas. São princípios simbólicos, não entidades reais. São figuras criadas pelos seres humanos para personificar coisas abstratas e fundamentais, o Bem e o Mal que subsiste em tudo, simultaneamente. Quando falamos do Lobo Mal, temos a oportunidade rara de confrontarmo-nos com o Mal no estado puro. Não temos de ponderar que se trata de um animal em extinção, cumprindo seu papel na cadeia alimentar, se é uma criança abandonada e criminalizada por uma sociedade hipócrita: trata-se de um assassino cruel que devemos eliminar a todo custo, para que a história acabe bem.

Não entendendo muito de pedagogia, mas sinto falta dos bons e velhos maniqueísmos que faziam confiar no mocinho na primeira infância, identificar-se com o bandido na adolescência e libertar-se na vida adulta.

7 Comments:

Anonymous Anonymous said...

A vantagem de ter síndrome de terra do nunca eh que vc entende bem essas coisas, continua vendo tudo com uma certa pureza e infantilidade.
A gente aprende muito com essas coisinhas pequenas, e a sua coisinha linda vai te ensinar coisas que irão de surpreender... Assim como os contos de fadas nos fascinam quando somos crianças.
Mas se vc precisar de uma baba pra assistir ao Barney com sua filhota pode chamar ^~

Beijos!

11:41 PM  
Anonymous Anonymous said...

Olha... Crianças-prodígio costumam me irritar um tanto quanto... Ainda que eu não esteja em um momento "ódio no coração", como agora. rsssss

11:08 AM  
Anonymous Anonymous said...

A Isabela adora o Barney tambem. Mas eu achei no i-Tunes Video Store os desenhos velhos dos 3 porquinhos, da lebre e a tartaruga, do Ferdinando, etc. E ela ve diariamente. Sao filmes de 5 minutos cada. Tambem soube q no Brasil eles re-lancaram aquela serie de contos de fada que vinha com um disquinho de vinil vermelho (agora em CD). Como nao tem aqui, comprei os livros da Chapeuzinho, Jack e o pe de feijao, Rapunzel, etc. e leio e faco a interpretacao...

1:24 PM  
Anonymous Anonymous said...

DO CARALHO!!!!
Nossa.. adorei o texto mesmo!!
Beijo

5:47 PM  
Anonymous Anonymous said...

Ser pai hoje, com as tecnologias disponíveis é muito mais fácil. Se vc achar um filme que seu filho goste mesmo, daqueles que vê duas, três vezes seguidas por dia é uma garantia de tê-lo entretido por horas. Já meus pais não tiveram a mesma sorte, também nem procuraram muito. Eles nunca foram muito a favor de que eu visse televisão (é, eu fui criada praticamente numa bolha cultural). Eu me lembro que tinha um livro infantil que eu adorava, tanto que pedia pros meus pais lerem pra mim algumas vezes por dia, muitas vezes seguidas. Eles até escondiam o livro pra ver se eu esquecia, mas não adiantava. Isso fazia com que eles ficassem horas a minha disposição, hoje em dia é só apertar o play. O que é ótimo para pais ocupados, mas é triste também...

11:21 AM  
Anonymous Anonymous said...

Barney bom era o amigo do Fred, casado com a gostosíssima Beth. Tb não gostava do Barney roxo, politicamente correto e chatonildo, mas tive que admití-lo em casa. Hoje sinto algum afeto por ele, que teve participação decisiva (mesmo) nos momentos mais difíceis do Leo. Ah… a Mari tem toda rezão no comentário dela. E estou me sentindo um pouco constrangido de frequentar seu blog, já que só a mulherada aparece...

5:14 PM  
Anonymous Anonymous said...

Deixa a Bebel te apresentar os Teletubbies. Vc vai sentir saudades do Barney.
Aliás, adoraria ler a respeito.

Ziza

6:50 PM  

Post a Comment

<< Home