Saturday, August 05, 2006


(ilustração: Cristóvao Colombo, sec. XVI, autor desconhecido)

A HISTÓRIA DO SAL



A história do sal provavelmente veio trazida por mouros que contaminaram a Andaluzia com suas coisas orientais muitos séculos antes que meu avô a ouvisse contada pela sua mãe. Foi sendo passada de uma geração à seguinte, sempre com sabores renovados pela boca de quem a contou, que um ponto acrescentou, ou omitiu, ou variou. Minha avó materna contava histórias com inflexões virtuosísticas que, se empolgavam os ouvintes e enchiam a sala de cores, sons, cheiros e personagens, ao mesmo tempo garantiam que a história contada pertencia ao mundo da ficção. Provavelmente foi com esses recursos que contou a história do sal à minha mãe, que tinha um jeito mais distanciado, quase científico, de contar histórias. Essa maneira, embora oferecendo espetáculos menos grandiloquentes, deixava a gente com uma sensação de que aquilo realmente tinha acontecido numa época antiga, num reino distante.

Era uma vez um reino distante. Havia obviamente um rei. Esse monarca, após a decapitação de várias esposas, conseguira gerar três descendentes homens com uma camponesa que fora ao baile sem convite. Num episódio não muito bem esclarecido, a moça conseguiu burlar o esquema de segurança e aproximar-se do então príncipe utilizando um ardil que envolvia abóboras, animais domésticos e um determinado sapato.

A camponesa, ao tornar-se rainha, deixou-se levar por caprichos rastaqüeras. Num par de décadas conseguiu endividar o erário, através de infindáveis redecorações dos palácios e da aquisição de vestidos, sapatos e bolsas preciosos. De tudo isso, separou sua comissão, fazendo secretamente uma reserva particular em bancos sigilosos da europa central.

Quando o primogênito atingiu a maioridade, a situação econômica ainda era razoável. O rei, então, ofereceu-lhe uma esquadra fortemente armada e disse:

- Vai, filho, navega os mares e traz toda a riqueza que puderes carregar contigo. Faz isso para celebrar minha glória e meu poder.

Apesar da fanfarronice evidente no discurso do pai, o primogênito singrou mares, conquistou territórios, contactou civilizações até então desconhecidas, guerreou, saqueou, comprou e vendeu; ao cabo de um ano voltou ao reino com seus navios abarrotados de ouro e pedras preciosas, tanto que uma das náus acabou por adernar à entrada do porto, e foi a pique. O tesouro permaneceu no fundo do canal, em profundidade que desafiava a tecnologia da época. Vários aventureiros voltaram à tona afogados ou com os tímpanos estourados pela pressão, espumando de embolia. O navio repousou no fundo da baía durante muito tempo, até a chegada dos holandeses, mais de um século depois.

A rainha, entusiasmada com o novo afluxo monetário, empenhou-se então na construção de um palácio das artes na região montanhosa do país, que seria destinado a abrigar o repertório operístico de um compositor muito em voga na época. O terreno acidentado dificultou sobremaneira o empreendimento, que superou em muito o prazo previsto inicialmente. Mesmo depois de 10 anos do início das obras, o teatro ainda funcionava de maneira precária, sem os recursos hídricos – que incluíam chuvas reais, rios de água corrente e uma queda d’água de mais de 100 metros - em plena operacionalidade, além de apresentar falhas técnicas constrangedoras no mecanismo de abertura do teto lunar, que utilizava uma parelha de 200 cavalos. Dizia-se à época que a rainha e o tal compositor tinham um relacionamento que transcendia a fruição artística e, de fato, anos depois, quando o reino já entrava numa fase de profundo endividamento junto aos banqueiros internacionais, fugiram do país levando consigo pouco além dos códigos das contas numeradas.

À época da maioridade do segundo filho, porém, o teatro entrava no terceiro ano de construção, e a dívida pública ainda era administrável. Assim, o rei ofereceu-lhe uma esquadra não tão grande como a do primogênito, nem tão fortemente armada, mas bastante razoável, e disse:

- Vai, filho, navega os mares e traz toda a riqueza que puderes carregar contigo. Faz isso para celebrar minha glória e meu poder.

Então, apesar das limitações de seu equipamento bélico, o segundo filho singrou mares, conquistou territórios, conheceu civilizações remotas, guerreou, saqueou, estuprou, comprou e vendeu, negociou e chantageou. Ao cabo de três anos, retornou ao reino com uma considerável fortuna em ouro e pedras preciosas, que encontrou destinação imediata junto aos credores internacionais, que já então ameaçavam o país com sanções.

O terceiro filho chegou à idade adulta quando sua mãe já havia fugido com o compositor, e o país sofria a recessão e o desemprego. O novo ministro do tesouro, renomado teórico da macroeconomia, impôs uma política de despesas austera que, se por um lado conteve a inflação do período anterior, matou de fome e outras doenças um terço da população. Nessa conjuntura, o rei ofereceu ao último dos filhos um barco em estado precário, que se encontrava pendurado no porto com a água invadindo os porões até quase o nível do convés. O terceiro filho, então, conseguiu reunir uma tripulação de três marinheiros recrutados com promessas de ouro e pedras preciosas. Quando recuperaram a sobriedade, já em alto-mar, tiveram de conformar-se em drenar os porões com latas de meio litro, tarefa que consumiu as duas primeiras semanas de navegação. Não foram muito felizes em suas primeiras incursões em terra: em Macau, foram expulsos pelos portugueses e somente escaparam com vida graças à intervenção de uma esquadra inglesa, que se interpôs no caminho, provocadora. Na micronésia, foram capturados por uns selvagens canibais, e escaparam da refeição pela intervenção de um padre jesuíta que vivia na ilha há muitos anos, tentando trazer os nativos à fé cristã. Sua estadia na ilha foi breve, mas conseguiram tempo e material para calafetar os vazamentos do casco.

Por onde navegavam, tudo parecia ter sido já explorado. O mundo inteiro já tinha dono: os holandeses no sul da África e nas Antilhas, os ingleses em Borneo, franceses na Indochina, portugueses em Calcutá e no Japão.

Depois de alguns anos, a tripulação estava a ponto de desistir, castigada pelo escorbuto e o beri-beri. Quando o motim parecia inevitável – o capitão já tinha seu imediato na mira da pistola – avistaram ao longe um ilha muito branca e brilhante. Quando aportaram, descobriram tratar-se de uma ilha totalmente constituída de sal, descoberta bastante decepcionante para todos à bordo. O terceiro filho, após refletir por alguns momentos, ordenou que carregassem o navio completamente com sal. Tal decisão deflagrou a discussão que culminou com a morte do imediato.

Serenados os ânimos, partiram ao sabor dos ventos, tentando achar terras mais promissoras, principalmente porque o suprimento de água começava a escacear.

Quase um mês depois, começaram a ver algumas aves sobrevoando o navio; depois de alguns dias, viam sinais de plantas terrestres nas águas. Acabaram avistando uma ilha muito verde, com sinais de civilização. Foram acompanhando a costa, até avistarem um porto. Evitaram uma aproximação frontal, aportando numa praia deserta onde desembocava um riacho. Saciaram a sede de semanas, mas mesmo assim os dois tripulantes não conseguiram ânimo para acompanhar o terceiro filho na incursão pelo interior. Após enveredar pela mata durante algumas horas, alcançou um caminho batido, ao longo do qual as cabanas foram ficando progressivamente mais frequentes, até que chegou ao muro da cidade. Curiosamente, não encontrou viva alma durante o percurso, tampouco nos portões da cidade. Seguindo a arquitetura radial das ruas, foi aproximando-se do ruído da multidão reunida na praça central. Misturou-se à população a tempo de presenciar o carrasco baixar seu machado sobre o o pescoço de sua vítima infeliz. Ao indagar aos populares do que se tratava, soube que aquele fora o décimo cozinheiro a ser executado por não agradar ao paladar do rei. O terceiro filho intuiu naquele fato uma oportunidade.
Ainda naquela tarde, conseguiu penetrar nas cozinhas reais, misturado aos fornecedores. O jantar estava sendo executado sob os ciudados de um novo cozinheiro que dava ordens com ares desesperados. Ao fundo da cozinha via-se um altar com várias velas acesas, e no pátio externo diversos animais haviam sido sacrificados em honra de várias divindades incoerentes.

Quando teve oportunidade, o terceiro filho aproximou-se das panelas, e ousou provar do sauce bernaise: faltava um pouco de sal, mas a textura e a concentração do estragão estavam corretas. Ao provar a bouilleabasse, novamente notou a ausência do sal. Tal fato repetiu-se no borsh, nos blinis, na feijoada, na moqueca, no pad-thai, no polpetone com pappardelle al ragu, na bisteca grelhada: não havia sal naquela comida! Era esse o problema do rei.

Sem refletir muito sobre tal ignorância culinária, o terceiro filho cruzou novamente os limites da cidade e foi até o navio. Encontrou os dois sobreviventes da tripulação amasiados às nativas, que eram muito lúbricas, de cabelos muito longos e negros, mas também muito asseadas, chegando a tomar até onze banhos de rio diariamente. Refestalados com suas amantes, saciados pelas frutas tropicais e a caça fácil, os tripulantes somente esperavam que a mandioca fermentasse para que então somassem o etilismo aos prazeres que ora desfrutavam. Tanto que não perceberam a visita que o terceiro filho fez à náu, de onde saiu carregando uma pequeno saco de couro.

Ao retornar ao palácio, o jantar já havia sido servido. A voz do rei ecoava pelas galerias, furibunda. O terceiro filho aproximou-se da sala de jantar. A mesa magnificamente posta tinha aproximadamente dezoito pratos; todos haviam sido recusados pelo monarca. Prostrado ao chão, num choro deseperado, o cozinheiro tinha já o pé do carrasco sobre o seu pescoço, imobilizando-o. O rei esbravejava ainda a respeito de seu tédio gastronômico, até que deu a ordem da execução. Nesse momento, o estrangeiro invadiu a sala e, com grande desembaraço, demonstrou as vantagens culinárias do sal que levava no saquinho preso à cintura. O rei provou do beouf-bourgignon, agora com a quantidade apropriada de sal, e seu semblante iluminou-se; a galinha à cabidela foi devorada sem a mínima etiqueta; o risotto à milanesa não resistiu mais que minutos. Ao chegar à mousse de chocolate, entendeu que uma pitada só seria mais que suficiente para cada quilo de açúcar.

O rei ficou gratíssimo e trocou todo o sal que havia no navio por ouro e pedras preciosas, na proporção de três para um. Assim, o terceiro filho retornou à sua terra com três náus abarrotadas de preciosidades, as duas outras pilotadas por seus tripulantes, que acederam em voltar ao reino de origem caso pudessem levar consigo seis ou sete das suas esposas.

Ao adentrarem o porto, foram recebidos em festa por uma população combalida pela pobreza e um ciclo de pestes que dizimara muitos dos seus, incluindo seu pai e seu irmãos mais velhos. Assim, o terceiro filho foi aclamado o novo rei. Aplicou sabiamente os recursos que trouxe de além-mar. Em poucos anos, o reino voltava a prosperar. Todos viveram felizes para sempre.

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