Monday, October 10, 2016

Hora Marcada


Ilustração: Edgar Hopper, Morning Sun (1952).


O homem falava havia quase meia-hora e Raquel não conseguia concentrar-se no que ele dizia. Permanecia à sua frente, atrás de sua escrivaninha, com um pequeno sorriso que desenvolvera para expressar empatia, mas na verdade sua mente voava muito distante. Não podia dizer onde: ora seu pensamento fixava-se na desgastada que pendia do colarinho do homem, ora vagava por mil regiões de sua mente e do tempo. Lembrava daquela vez em que tinha sido rude com a professora de inglês e só percebera o fato depois de semanas. Ela ainda acordava de noite envergonhada daquele episódio. E isso havia sido há mais de 30 anos. O tempo da entrevista terminou e ela não poderia dizer quais eram os problemas do homem, que se chamava João. Mesmo assim, combinaram 3 sessões semanais. João concordou em iniciarem na semana seguinte.

 

            Em sua sessão com Rui, seu próprio psicanalista e supervisor, Raquel mencionou sua dispersão com o paciente.

-       Isso é material para a análise, Raquel. Tudo é material! Ele é muito deprimido? Às vezes as pessoas deprimidas estão sem energia suficiente para serem interessantes...

-       Rui, eu sei reconhecer a tristeza. Esse homem... parecia um gravador. Parecia que não estava ali.

            Rui pensou por alguns segundos.

-       E você estava ali? Pode haver algo dentro de você que a impede de relacionar-se com o que ele diz. Você tem certeza de que pode ajudar esse rapaz?

-       Não é um rapaz, é um homem. De uns 60 anos. Não sei...

 

            Mas as sessões continuaram, e Raquel olhava para a parede oposta do consultório enquanto seu paciente falava profusamente no divã, sem se dar conta que a psicanalista não prestava a mínima atenção em seu monólogo. Ao invés disso, ela examinava detalhadamente as imitações de papiro com reproduções de hieróglifos. Escolhera cuidadosamente essas gravuras para seu consultório, pensando serem neutras o suficiente para não provocar juízos de valor na cabeça de seus pacientes. Ao mesmo tempo, deixava transparecer sua simpatia por Jung, uma sutil brincadeira interna com seus colegas de sociedade psicanalítica que ela jamais compartilharia com alguém.

 

            Raquel agora tentava alinhar, usando um só olho, a ponta do seu lápis com a ponta do cetro do Osíris na parede oposta. Foi quando ouviu pela primeira vez em muitas décadas a risada daquele homem. Ela nem sabia a causa do riso, mas o som era muito familiar. Era uma risada fina, penetrante, que discordava totalmente da estatura e corpulência do seu dono. A boca de Raquel encheu-se de uma salivação reflexa e uma náusea que vinha das pernas, da espinha, de todos os seus poros a fez correr para o banheiro no tempo justo para que um jato de vômito fortíssimo ­­­­

 

            Depois de alguns minutos, visivelmente transtornada, ela voltou à sala. Mentiu que estivesse bem, e ainda permaneceu os 20 minutos seguintes, controlando sua náusea, com seus olhos muito abertos e ouvidos bem atentos ao que dizia aquele homem que a havia estuprado há mais de 20 anos.

 

***

 

            Sua vida havia demorado a entrar nos eixos. Depois dos primeiros anos de depressão, Raquel finalmente criou coragem para terminar a faculdade. Primeiro, foi uma coisa de fora para dentro: obrigou-se. Disciplinou-se. Um dia, levantou-se da cama, vestiu-se e surpreendeu a família no café da manhã. Comeu as torradas fingindo ser uma pessoa normal que sentia uma fome normal. Ninguém ousou fazer qualquer comentário a respeito, como se a menor menção ao seu estado pudesse quebrar o encanto que proporcionava aquele momento trivial, o primeiro em quase dois anos. E tomaram seus cafés, comeram seus pães, leram seus jornais, falaram amenidades, como se a vida sempre tivesse transcorrido normalmente.

            Raquel saiu de casa e estranhou a cor azulada da luz da manhã, os cheiros atarefados de antes do almoço que a cidade possuía, as sombras das coisas ocorrendo do lado oposto ao esperado, depois de muito tempo dormindo até o meio da tarde. Ela inalou o ar da manhã... e não sentiu nem mesmo pena de si.

Na terapia, ficava sessões inteiras sem dizer uma palavra. Os meses foram passando, até que conseguiu chorar. Pode ter sido um comercial de carro, ou um filme de sessão da tarde, que disparou o choro que durou algumas semanas. Sua terapeuta limitava-se a passar-lhe os lenços de papel. Ao final da sessão, ouvia que estava fazendo progresso.

            Transferiu de filosofia para psicologia, assegurada de que quem sente a dor também pode curá-la. Depois do terceiro ano, sentiu vontade de viver. Ganhou peso e entusiasmou-se com os estudos.

            Mas seguiu desconfiando de si mesma. De alguma maneira, ela sabia que sua verdadeira identidade era aquela que um dia iria enterrar-lhe um punhal nas costas, quando menos se esperasse. Esse pensamento não era muito claro; era só uma ideia vaga que passava pela sua cabeça, rápida e fugidia como um duende, naquele momento em que a mente da gente está entre o sono e a vigília e os pensamentos são parecidos com sonhos.

 

***

 

            Raquel folheava freneticamente a terceira revista, com as mãos trêmulas. Sua vontade era sair correndo por aquela porta, mas ela já não tinha mais como justificar-se. Havia faltado às últimas duas sessões, tentando recompor-se. Seu coração palpitava cada vez que pensava na possibilidade de Rui descobrir seu segredo. Toda a sua relação com Rui havia sido construída sobre uma mentira, praticamente. Se ela revelasse agora seu segredo, certamente seria o fim de sua carreira. Perderia seu assento na Sociedade, perderia seus clientes, seus amigos... Esse era um pensamento circular que reverberava em sua mente há dias. Com o coração acelerado, levantou-se para ir embora dali no exato momento em que Rui abriu a porta de sua sala para recebê-la. Cumprimentou-a com um sorriso de saudade sincera, ao que ela respondeu com um balbucio incompreensível.

            Um rio de palavras aparentemente conexas saia de sua boca. Esperava um suposto momento correto para contar a verdade medonha que tinha dentro de si, mas não o encontrava. Depois de 50 minutos de torrente verbal, Rui avisou que seu tempo terminara. Raquel então sentou-se no divã, colocou sua bolsa no colo e um choro convulso a dominou. Contou tudo, como havia acontecido, como havia tentado esconder durante anos, como havia reconhecido a risada de seu algoz depois de 22 anos.

-       Mas você tem certeza de que é ele? Será que você não pode ter se enganado? É uma prova muito tênue, você reconhecer a voz...

-       O riso!

-       Ou o que seja. Afinal, você fugiu disso durante quantos anos? Será que não é um movimento seu para tentar resgatar uma...

            Raquel teve um ataque de raiva, sentindo o questionamento de Rui como uma traição. Ele conseguiu acalmá-la parcialmente, mas na verdade o paciente das 17h já havia tocado a campainha por duas vezes. Marcou com Raquel uma nova sessão para aquele mesmo dia, às 18h.  Raquel concordou, mas aquela foi a última vez em que conversaram.

 

***

            As semanas seguintes transcorreram numa atmosfera de sonho ruim. Raquel não teve coragem de retornar ao consultório de Rui, nem de atender a suas chamadas.

            Em seu consultório, Raquel passou a fumar dentro da sala de atendimento, coisa que não fazia desde os anos 1980, quando ainda era socialmente aceitável. Na verdade, ela perdeu alguns pacientes por isso, mas o único que a importava também fumava.

            Quando a dúvida suscitada por Rui ainda estava presente em sua mente, ela tentou direcionar a conversa para que ele pudesse confessar a ela a atrocidade que os unia. Mas ficavam envoltos em sua névoa de nicotina, ele falando sobre sua vida enfadonha de funcionário público e ela tentando detectar algo que confirmasse aquilo que em seu coração tinha certeza. Tentava ser engraçada, na esperança de ouvir novamente aquela risada terrível que confirmaria definitivamente suas suspeitas, mas sem sucesso.

            Em pouco tempo, ele se tornou seu único cliente. Faziam sessões diárias, a preço especial que ele nunca chegou a pagar. Ainda naquele mês, a polícia arrombou a porta do consultório.  Os policiais ainda puderam perceber no ar o cheiro amargo do cianeto. O corpo do funcionário público foi encontrado junto à porta reforçada, com escoriações nos dedos. Em sua cadeira de couro, à cabeceira do divã, o corpo de Raquel parecia repousar, e alguém sugeriu até mesmo perceber um sorriso em seus lábios. No cinzeiro, um cigarro com sua cinza inteira prestes a cair, como se tivesse queimado sem que alguém o tragasse.

 

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