Wednesday, April 25, 2007

O Jack do Lost e a Imbecilidade Racional


(ilustração: Alan Davie, "Room Of The Cosmic Signaller #2", 2000.)



O Filipe e a Vanessa estão assistindo ao "Lost", aquele seriado que vicia, mas não goza. Eu já fui dependente, assistindo às duas temporadas disponíveis em DVD durante um único fim de semana. Hoje, freqüento grupos de apoio, e consigo aguardar a 3ª temporada sem recorrer à pirataria, ou a crimes mais graves.

O Jack do "Lost" é o líder do grupo nos primeiros episódios. O Filipe e a Van acham o Jack o máximo. Quando falei que o cara era uma besta, eles se surpreenderam. Médico, racional, vai provando ser um chato no decorrer da trama. Nos primeiros episódios, ainda não dá para perceber isso, porque ele se apresenta pró-ativo, líder corajoso e sensato, um médico na sala de cirurgia do pronto-socorro. Aos poucos vai ficando pentelho, rancoroso e mimadinho. Mas o Filipe e a Vanessa ainda não sabem disso.

Quando eu disse que o Jack era uma besta, o Filipe estranhou: disse que até achava que o cara era parecido comigo, e ele apontou a semelhança no aspecto de racionalidade da personagem. Isso não me surpreendeu, já que algumas pessoas fazem essa confusão.

Muita gente confunde meu modo de pensar. Chegou o momento de definir de uma vez por todas que não sou positivista. Na verdade, o que me guia a vida é muito mais a intuição e a sensação do que o pensamento. Quem vive ou trabalha comigo percebe minha exasperadora falta de planejamento e o improviso intuitivo, às vezes impulsivo. É até mesmo, eu diria, uma posição política: sou anarquista pessoal. Desisti de ser piloto por achar que não era CDF o suficiente. Quando viajo, faço questão de não planejar nada: reservo hotel somente para o primeiro e último dias de viagem. Alugo um carro e saio na louca, descobrindo as reservas do destino.

Além disso, confio plenamente na ignorância humana. Penso que todas as formas de compreensão humana acerca das coisas e do universo em geral sejam tentativas insatisfatórias. Nossos conceitos a respeito das coisas são provavelmente muito precários, limitados pela nossa capacidade de perceber a realidade e conceber idéias. Imagino a lógica e a ciência como sendo apenas formas dignas de lidar com essa incompreensão acerca da realidade, e por isso eu as respeito. Sim, eu tenho um lado bastante racional, mas eu sei que as verdades científicas são de mentirinha, de certo modo. São verdades provisórias, que serão modificadas no futuro, mas que são algo do que temos de melhor para entender o mundo.

Naquela entrevista do Guimarães Rosa ao Lorentz, que mencionei em texto recente, o escritor também é acusado de ser lógico e racional, ao que ele reagiu como se lhe houvessem xingado a mãe. Preferia ser lembrado como um cara que fala do sertão místico, do espírito, das coisas inexatas e misteriosas, ao mesmo tempo que sua técnica de escritura é paradoxalmente racional e sofisticada. E falou umas coisas sobre "prudência" que me soaram meio confusas, mas que pareciam conter uma reflexão profunda anterior. Dizia que "a lógica é a prudência transformada em técnica", e que isso não era útil em nada.

Coincidentemente, na mesma semana, estava relendo do Bertrand Russel a "History of Western Philosophy", e achei a fonte original da idéia da prudência a que Guimarães se referia. Durante suas reflexões a respeito do culto a Baco e a Orfeu, na grécia antiga, Russel diz que a civilização é um processo em que a prudência vai tomando o lugar do instinto. A prudência é abrir mão do presente pensando no futuro. É cultivar a terra pensando no grão que será colhido meses depois. O instinto é a caça, é a matança prazerosa para o consumo imediato. À medida em que uma civilização vai evoluindo, Russel pondera, essa prudência pode sufocar demais as formas de comportamento menos racionais. Isso geraria uma reação na direção oposta. Assim, em momentos civilizatórios em que se alcançam níveis altos de sofisticação técnica, científica e cultural, surge a tendência a uma compensação. Na civilização helênica, esta compensação foi representada pelo retorno aos rituais antigos e primitivos de culto a Baco, e ao orfismo. As bacantes permitiam que seus participantes atingissem estados mentais que os fazia abrir mão da racionalidade; entregavam-se à intoxicação, à dança, ao contato com os elementos, ao devorar da carne crua de animais sacrificados ritualmente e outras barbaridades.

Em nosso momento histórico, percebemos esse tipo de movimento com clareza. Dá preguiça de falar a respeito do Paulo Coelho, mas pessoas procuram formas alternativas de percepção e compreensão da realidade que se contraponham ao cientificismo, que é a verdade oficial desde o positivismo. Eu encontro isso na arte. Tem gente que encontra na religião, ou na yoga. Eu respeito.

Mas, tem uma coisa: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O que me deixa aporrinhado é quando misturam tudo sem nenhum critério, e tentam apresentar provas científicas dos mistérios da fé, ou achar concordâncias arbitrárias entre abordagens que, se não conflitantes, deveriam ao menos ser consideradas complementares, sem a obrigação de congruência. Então, quando chegam com uma máquina de fotografar espíritos ou fazem um documentário sobre a verdadeira vida sexual de Jesus Cristo, desprezo. Aí, pensam que sou racionalista juramentado. Mas não sou. Cada um tem o direito de acreditar naquilo que quiser. Mas não venha dizendo que é verdade. Porque não dá pra saber se é ou não.

Who cares, anyway...