Monday, July 31, 2006
Sunday, July 30, 2006
Insetos
(ilustração: De Chirico, "Melancholy and Mistery of a Street", 1913.)
Insetos
Enquanto mirava o vaso com o seu jato incerto, o formiga tentava imaginar nua a louva-a-deus que o esperava no balcão. Reflexivo, dava-se conta de que sempre gostara de mulheres altas, mas acabara casando com uma formiguinha brevilínea. Tanajura de boa bunda, mas pequena e acanhada, só se via brilho nos olhos se fosse para falar de doença. Então, punha-se a descrever casos clínicos da família, da vizinhança e das celebridades da TV, tecia impressões sobre novas modalidades terapêuticas e orientava quem precisasse ou não dos seus conselhos paramédicos.
Abriu a porta do banheiro e inspirou aliviado a atmosfera sórdida do bar. Cambaleou em direção à deusa, que brincava com o gelo do seu uísque, introspectiva, os cotovelos apoiados no balcão. Isso fazia das suas costas, imensas e brancas, intermináveis, expostas pelo decote do vestido de veludo verde escuro. Foi se aproximando com um sorriso meio demente, julgando-se superior aos homens de todo o mundo, que não tinham a chance de estar ali com aquela fêmea cinematográfica. Seu estado de embriaguez impediu que formulasse com clareza a questão, mas um esboço de raciocínio atravessou sua mente otimista: por que ele?
A louva-a-deus recebeu-o com um sorriso de olhos verdes apertados:
- Pensei que tivesse fugido pela porta dos fundos...
- Demorei, é? O banheiro estava mais concorrido que velório de político.
Ela riu. Era deslumbrante quando ria. Ele sorriu de volta, aliviado pelo sucesso da piada.
- Mas então você é amigo da cigarra?
- Ah, sim. Fomos mais que amigos, eu poderia dizer – e já havia dito, tentando impressionar.
- E você não a via há muito tempo...
- Claro, desde que ela se tornou uma pop-star, meu acesso ficou um pouco restrito. Como a fama muda as pessoas, não? Um pouco de sucesso, sei lá, não quinze, mas uns vinte minutos de fama já são suficientes para uma pessoa mudar de círculos, rodeada de acessores e porta-vozes. E gente que gosta de viver das migalhas da fama alheia não falta, por aí – disse, despeitado.
E contou como havia encontrado com a cigarra por acaso, naquela tarde. Ele passava em frente à porta de uma loja elegante quando a estrela saía esbaforida, envolta em sacolas de griffe e gente que orbitava seu sucesso. Trombaram, algumas sacolas caíram, e os seguranças já tentavam afastá-lo quando reconheceram um ao outro. Constrangida e surpresa, a cigarra acabou convidando-o para um almoço rápido, ali mesmo no shopping. Cada um com sua bandeja de fast-food, foram sentar-se numa mesa mais afastada da praça de alimentação, com os seguranças a uma distância respeitosa. Alguns fãs a reconheciam de longe.
- Parece incrível mas hoje em dia é quase impossível vir fazer compras como qualquer pessoa. Há anos eu não vinha aqui!
- Tudo tem seu preço – disse o formiga, desembrulhando rancorosamente seu hambúrguer. A cigarra ficou em silêncio, limitando-se a dar uma garfada no seu salmão com salada.
- Quanto tempo, hein? – falou a estrela, finalmente, tentando direcionar a refeição para a trivialidade.
- Para mim parece que foi ontem que nos vimos pela última vez. É claro que você estava menos maquiada. E usava menos ouro.
- Você casou, não é? – tentou a cigarra.
Agora foi a vez do formiga calar. Depois de alguma mastigação, teorizou:
- Acho que consegui definir o que a gente reconhece visualmente como uma “perua”. São mulheres de meia idade de biótipo mediterrâneo, mas o cabelo pintado de louro, e o rosto emoldurado por colares e brincos muito dourados. Umas morenaças em molduras barrocas, é isso, tentando negar a estirpe. Uma coisa meio etnocêntrica...
- Olha, se você vai continuar me provocando...
- Calma, calma, não estou falando de você, não, sua perseguida. Se bem que seus brincos realmente me chamaram a atenção. Eu prefira seu estilo de anos atrás, quando você ainda não se dava a esse tipo de exagero.
A cigarra, distante, esboçou um sorriso para seu salmão grelhado. Há poucos anos ela não teria a opção de usar ou não brincos como aqueles. Não usava nada, pois mal tinha o que comer. Hoje talvez estivesse perdendo a crítica, e realmente tinha que tomar cuidado com a aparência, afinal ela era uma figura pública e grande parte do seu sucesso, ela sabia, era relacionado com a impressão visual que ela transmitia ao público. Ser artista é estar exposta, pensou, não adiantam utopias de privacidade. Sua maior obra era sua vida, e tudo o que o que fazia, 24 horas ao dia, como essas pessoas que hoje em dia estão transmitindo via Internet o seu tedioso cotidiano, agora ela entendia a metáfora. Será que deveria trocar de consultora de moda? Ela não havia gostado nada das roupas escolhidas pela dita cuja. Numa outra loja havia uns modelos muito menos convencionais que...
- Você ainda se lembra da cigarra que você era há alguns anos atrás? – disse o formiga, trazendo-a de volta àquela mesa.
- Claro que sim. Você sabe que sim. Escuta, acho que já está na hora de você entender o que aconteceu entre a gente.
- E o que teria acontecido entre nós, na sua versão?
Ela tentava reconstruir o caminho que a levara àquela situação. Por que ela tinha de estar ali, àquela hora, tendo de se explicar?
- Acho que aqui não é o lugar apropriado para termos esse tipo de conversa – disse, claustrofóbica.
- Muito conveniente para você...
Nesse ponto, aproximou-se da mesa um dos inúmeros acessores da cigarra:
- Ci, temos que ir, a entrevista...
- Claro, claro já estamos nos despedindo, pode ir chamando o carro.
O formiga já estava prestes a fazer uma cena, quando a cigarra tirou um cartão da bolsa e entregou a ele. Que ligasse para ela. Que marcassem outro encontro, a sós, num lugar mais tranqüilo.
- Espero você ligar.
E sumiu com seu séquito, rumo aos estacionamentos, suas antenas oscilando ligeiramente acima das outras, mortais.
* * *
Foi acordado na madrugada pela dor-de-cabeça . Não reconheceu a louva-a-deus que dormia a seu lado. Chegou à cozinha por tentativa e erro, engoliu muita água. Não teve condição de muito raciocínio, voltou a dormir ao lado da ressonante louva-a-deus, de quem agora ele tinha uma vaga lembrança, e sonhou com uma tanajura tímida que lhe assistia a trepar com a cigarra. Não chegaria a se lembrar desses sonhos, ao acordar.
* * *
Acordou tarde, já bastante atrasado. Estava só. Encontrou um bilhete no espelho: “Obrigada pela noite maravilhosa. Beijos. L.
P.S.: Jogue a chave por debaixo da porta. E ligue-me à noite.”
* * *
Bateu o ponto no formigueiro com um atestado médico falso. Trabalhou feito uma formiga, carregando seis vezes o seu próprio peso.
* * *
Sentou na cama e acendeu um cigarro. Não conseguia dormir. Olhou para o corpo inerte da tanajura, e lembrou-se das longas pernas da louva-a-deus. Soltou a fumaça.Virada para a parede, de olhos abertos, a tanajura fingia dormir; da mesma maneira, fingira acreditar na história do seqüestro pelo O.V.N.I., e fingia não se importar que fumasse no quarto.
* * *
A louva-a-deus sempre vinha por cima, fazendo caras de modelo. O formiga olhava admirado a beleza transtornada da ortóptera, cavalgando antes compassada, e acelerando, crescendo sobre a pelve passiva do formiga, e gemendo, agora fodendo furiosamente, seu rosto tomado pelos espasmos, e seus olhos iam ficando terríveis e malignos, até o gozo assustador, que parecia um frenesi alimentar. Ia para o banheiro imediatamente. O formiga ficava largado na cama, orgulhoso por nada.
* * *
Um dia, a louva-a-deus disse:- Você merece ir à forra pelo que a cigarra fez com você.
O coitado sustentara a cantora por longos anos, durante rigorosos invernos, e mesmo através de alguns verões bastante amenos. Foram amantes assimétricos: ela raramente chegava a ter algum prazer, enquanto que ele se desmanchava rapidamente. Ele a presenteava com insistentes compensações, e fazia esforço em não perceber a fragilidade daquela ligação, com toda a sua tenacidade de formiga. Quando veio sua chance, a cigarra a agarrou: um caso com um produtor famoso, um disco numa gravadora grande, uma música na novela. Uma ponta em outra novela. Dois casamentos: um com o tal produtor; outro com um ator da segunda novela. E nunca mais viu o formiga, até aquele encontro no shopping.
A louva-a-deus encarregou-se de transmutar a autocomiseração do formiga em ódio pela cigarra. Ela propôs o seguinte: ele marcaria com a cigarra o encontro prometido no shopping. Iriam a algum lugar ermo, sem os seguranças; ela iria com alguns amigos e os interceptaria. Seria um seqüestro rápido, com um resgate relativamente baixo. Seria sua vingança.
O formiga resolveu afastar-se da louva-a-deus. Voltou a chegar cedo em casa. Assustava a tanajura com sua nova agressividade sexual, a que ela tentava corresponder, mas acabava tendo cãibras. Isso durou duas semanas.
Numa terça-feira, faltou ao trabalho e foi ao apartamento da amante, que o recebeu vestindo uma camisola longa transparente. Fornicaram durante todo o dia. À noite, ele ligou para a cigarra, marcando o encontro.
* * *
Tudo correu como o planejado: os insetos do bando da louva-a-deus interceptaram o BMW da cigarra próximo à marginal. Não houve resistência, salvo uma ligeira simulação por parte do formiga.No cativeiro, a cigarra permanecia amarrada e vendada.
- Você acha isso mesmo necessário? – perguntava ao gafanhoto, líder do bando de insetos criminosos.
O bandido nunca respondia às suas perguntas. E muito menos sorria. O modo como ele abraçava a louva-a-deus incomodava o formiga.
À noite, o formiga aproveitou um cochilo do grilo, o sentinela do turno, e entrou no quarto da cigarra. As luzes estavam acesas, mas a refém estava vendada e amarrada. E nua. Dormia encolhida sobre um colchão imundo. Ele ficou chocado ao vê-la naquela condição. Arrependeu-se. Quis desamarrá-la, que saíssem correndo dali. Mas já fora longe demais, já não podia voltar atrás. Aproximou-se. Observou o corpo nu da cigarra. Lembrou-se de como era bom perder-se entre aquelas coxas. Chegou quase a tocar sua bunda, sua mão a menos de um centímetro da pele nua da cigarra. Repentinamente, ela acordou:
- Tem alguém aí? Quem está aí?
Ele deu um salto instintivo para trás, assustado. Ela suplicou:
- Por favor, não me machuque...
Ele se manteve quieto, os olhos muito arregalados, imaginando se ela sabia que as luzes estavam acesas. Notou que a cigarra tremia. Acalmou-se. Decidiu ficar no quarto.
- O que você vai fazer comigo? – perguntou a indefesa, com voz incerta.
Ele não respondeu. Começou a ter sentimentos ambíguos. É claro que era hediondo, mas ele sentia algum prazer em vê-la tão indefesa, tão à sua mercê. Aproximou-se do colchão. Tocou o braço da cigarra, que se encolheu toda, mas não gritou. Alisou suas costas, quase sem acreditar no que suas mãos faziam, quase involuntariamente, a cigarra tremia muito, mas não emitia mais que um gemido muito tímido; suas mãos passaram pelas nádegas, e seguiram pelas coxas, a cigarra tentou afastar-se, mas não conseguiu, toda amarrada, ficou arfando, e ele possuía seu corpo com as mãos, um tanto horrorizado com o que fazia, pensando em como ela parecia frágil, agora, a traidora, e começou a delirar de poder, ódio e tesão, manipulando aquele corpo, suas mãos indo e vindo sobre a pele indefesa, sentindo cada fibra dos seus músculos macios, roçando seus pelos púbicos, agora em direção ao sexo da cigarra, ao sexo da puta, sua puta, não me quis, não foi?, agora veja o que eu faço com você, ele pensava, e ao mesmo tempo pensava na coitada e no que suas mãos horríveis faziam, mas ela merece, é uma puta ingrata, que trepou com todo mundo pra subir na vida, agora está aí, nem sabe que a luz está acesa e eu estou vendo o seu corpo todo tremendo, agora você vai ver, e a cigarra começou a chorar mais alto e ele tentou tapar sua boca mas por que caralho não amordaçaram essa vaca vai acabar acordando todo mundo...
- ...cala a boca, sua vagabunda!
- Formiga? É você?!
Ela reconheceu sua voz. E começou a gritar:
- É você? É você? Responde!
Os criminosos não demoraram mais do que alguns segundos. Já chegaram espancando o formiga, que não conseguia esboçar reação, em estado de choque, nem tanto pelo que fizera, ou pelo que iria acontecer consigo, mas sim pelo tom desesperado da voz da cigarra ao reconhecer sua voz.
A cigarra foi morta, e a seu corpo foi dado sumiço. As negociações sobre o resgate tornaram-se difíceis, com a falta de provas de que a refém ainda estivesse viva.
No seu terceiro dia de clausura no porão, o formiga recebeu a visita da louva-a-deus. De maneira surpreendente, ela aparentava serenidade. Desceu ao calabouço e começou a limpar os ferimentos do formiga. Ele consentia, silencioso. Então falou:
- Você se aproximou de mim somente por esse motivo.
Ela não respondeu. Continuou a limpar os ferimentos. Ele continuou falando. De como ela o traíra. De como ele tinha confiado nela. De como ela o tinha obrigado a cometer barbaridades, etc., etc...
Mas a louva-a-deus já havia terminado sua tarefa. Agora, despia-se. O formiga não entendia. Ela começou a acariciar o corpo do outro. Perplexo, ele começava a ter a mesma sensação que tivera noite em que encontrara a louva-a-deus pela primeira vez; dessa vez chegou a perguntar, excitado:
- Por que eu? E por que agora?
Ela já estava sobre ele, e movia os quadris. Sorriu levemente, com seus olhos verdes fendidos:
- Você deveria conhecer melhor os hábitos alimentares dos insetos com quem se envolve...
Naquele instante, deu-se conta do que aconteceria. Procurou ao redor e não encontrou ninguém a quem pedir socorro.
No momento seguinte, a louva-a-deus deu um grito aterrorizante e precipitou-se vorazmente sobre a cabeça do formiga.
Friday, July 28, 2006
(NOVO) Os Prazeres e os Riscos: parte II
No texto anterior eu não consegui chegar ao ponto que queria. A lembrança do luto sincero e integral da Heloísa deixou tudo mais solene. Resolvi parar antes de chegar onde queria, por respeito e simpatia à sua dor.
Muita gente escreveu-me dizendo da perda de entes queridos, a dor da separação... Acho legal que o texto tenha movido estas pessoas, que tenha virado o que virou. Às vezes é assim, você quer escrever uma coisa, acaba virando outra. Prova da imperícia do escritor, ou da urgência do assunto que vingou. Quando comecei, meu tema era muito mais egoísta: eu queria falar sobre como o Playstation vem provavelmente salvando minha vida.
Tenho de admitir que tenho alguns hábitos que podem soar excêntricos e perigosos. Meu hábito de nadar no mar, por exemplo. Eu sei que é um pouco arriscado, mas parece muito pior do que realmente é. Da praia, pensam que eu estou nadando muito longe da costa. As pessoas perdem-me de vista. Mas, como as enseadas são curvas, em geral estou mais perto da praia do que as pessoas pensam. Nadar no mar dá uma sensação de autonomia muito boa. Ir de uma praia a outra pela força dos seus próprios braços e pernas, sentir-se só em meio a algo muito maior, envolto por águas que parecem infinitas, flutuando sobre profundidades insuspeitadas... é quase uma experiência religiosa. O mar tem essas propriedades, de redefinir as proporções, de deixar a gente mais conciente do tamanho do planeta e do universo. É um pouco como voar de avião, como navegar em alto mar, como pular de asa-delta, essas coisas perigosas de que o Alê gostava, e eu também. Como visitar o deserto. Imagino que Jesus errando pelo deserto da Galiléia deve ter chegado a essa dimensão. E talvez tenha pirado, de fato, ouvindo demônios dentro da cabeça, concluindo ser filho de Deus. (Os psicanalistas falam também de "experiências oceânicas", quando querem fazer referência a vivências reconfortantes, associadas a fantasias de retorno ao útero.)
Já dei vexame, por causa desses hábitos. Na verdade, em geral são as pessoas que me esperam na praia que dão o piti. Estamos impedidos de voltar a Trindade, por exemplo. Uma vez, fomos comer uma moqueca num boteco na areia da praia do meio. Depois de alguma caipirinha, cerveja e frutos do mar, resolvi dar uma nadada. Pedi a Patrícia que fosse buscar-me na primeira praia ali de Trindade, aquela menor, em que a gente sai depois do "Deus-me-livre". Quando estava quase na boca da praia, um cara num caiaque aproximou-se de mim. Meio lacônico, o cara me cumprimentou, meio caiçara, meio caipira. Cumprimentei de volta, achando estranho aquele cara ali de caiaque, parando no meio do mar para uma prosa. Aí ele disse que minha mulher tava desesperada, lá no bar. E que ele tinha saído atrás do cadáver, praticamente. Mas viu que eu estava bem. Perguntei se ele ia voltar ao boteco, ele disse que sim, pedi que reiterasse meu encontro com a Patrícia ali naquela praia. Ele partiu remando. Peguei uns jacarés com os surfistas, que estranharam meu surgimento do meio do mar, e fui até a praia. Fiquei esperando um pouco, até que meu carro surgiu buzinando muito e com raiva, entrei rapidinho, com Patrícia gritando e chorando.
Depois fiquei sabendo do ocorrido: que ela foi me seguindo com os olhos; depois de um determinado momento, eu sumi de vista. Perguntou se alguém conseguia ver-me, conseguiu um binóculo, não me achou, começou a ser recriminada por todos no bar, "como você deixou...", tentou convencer uns pescadores a irem dar uma busca de barco, os caras não quiseram, com os barcos já no abrigo, e a preguiça vespertina de quem escolheu ser pescador. Chorou, gritou, desacatou, ameaçou, conseguiu constranger o cara do caiaque.
Não foi a primeira vez que esse tipo de coisa aconteceu, mas foi a última. Nunca mais nadei no mar, a não ser localmente, pegando jacaré, surfando... essas coisas. Tudo bem. Mas em janeiro passei um mês na praia, Costão do Santinho. Fui sem carro. Um mês dentro de um condomínio. Abrigado. Comendo nos mesmo lugares todo dia. Hummm... minha barba começou a cair! Estressei.
É isso. O abrigo em demasia estressa, a falta de secreção das adrenais, de excitação e novidade causa-me uma uma espécie de síndrome de abstinência. Meu DNA provavelmente não foi selecionado para esse tipo de vida. Digo isso vendo minha filha. Acordada, em casa, ela dura 20 minutos. Depois desse prazo, tem que sair, pendurar-se nos brinquedos da praça. Mesmo DNA. Não tem dois anos, ainda, e já quebrou dois dentes, a sapeca.
Minha vida sempre foi assim: compatibilizar esses impulsos, que são de vida, mas também de morte, com uma existência relativamente normal, criando filhos, tendo um lar, plano de saúde, caminhando para uma velhice amparada. Mas meu cérebro, a cada par de anos, arma situações para que eu abandone a estabilidade. E eu depois tenho que reconstruí-la. Talvez eu tenha nascido para ser um aventureiro, mesmo, um vagabundo, um gauche na vida. Um anjo meio torto deve ter envenenado meus ouvidos. Enquanto não vem pra me buscar, jogo playstation.
No texto anterior eu não consegui chegar ao ponto que queria. A lembrança do luto sincero e integral da Heloísa deixou tudo mais solene. Resolvi parar antes de chegar onde queria, por respeito e simpatia à sua dor.
Muita gente escreveu-me dizendo da perda de entes queridos, a dor da separação... Acho legal que o texto tenha movido estas pessoas, que tenha virado o que virou. Às vezes é assim, você quer escrever uma coisa, acaba virando outra. Prova da imperícia do escritor, ou da urgência do assunto que vingou. Quando comecei, meu tema era muito mais egoísta: eu queria falar sobre como o Playstation vem provavelmente salvando minha vida.
Tenho de admitir que tenho alguns hábitos que podem soar excêntricos e perigosos. Meu hábito de nadar no mar, por exemplo. Eu sei que é um pouco arriscado, mas parece muito pior do que realmente é. Da praia, pensam que eu estou nadando muito longe da costa. As pessoas perdem-me de vista. Mas, como as enseadas são curvas, em geral estou mais perto da praia do que as pessoas pensam. Nadar no mar dá uma sensação de autonomia muito boa. Ir de uma praia a outra pela força dos seus próprios braços e pernas, sentir-se só em meio a algo muito maior, envolto por águas que parecem infinitas, flutuando sobre profundidades insuspeitadas... é quase uma experiência religiosa. O mar tem essas propriedades, de redefinir as proporções, de deixar a gente mais conciente do tamanho do planeta e do universo. É um pouco como voar de avião, como navegar em alto mar, como pular de asa-delta, essas coisas perigosas de que o Alê gostava, e eu também. Como visitar o deserto. Imagino que Jesus errando pelo deserto da Galiléia deve ter chegado a essa dimensão. E talvez tenha pirado, de fato, ouvindo demônios dentro da cabeça, concluindo ser filho de Deus. (Os psicanalistas falam também de "experiências oceânicas", quando querem fazer referência a vivências reconfortantes, associadas a fantasias de retorno ao útero.)
Já dei vexame, por causa desses hábitos. Na verdade, em geral são as pessoas que me esperam na praia que dão o piti. Estamos impedidos de voltar a Trindade, por exemplo. Uma vez, fomos comer uma moqueca num boteco na areia da praia do meio. Depois de alguma caipirinha, cerveja e frutos do mar, resolvi dar uma nadada. Pedi a Patrícia que fosse buscar-me na primeira praia ali de Trindade, aquela menor, em que a gente sai depois do "Deus-me-livre". Quando estava quase na boca da praia, um cara num caiaque aproximou-se de mim. Meio lacônico, o cara me cumprimentou, meio caiçara, meio caipira. Cumprimentei de volta, achando estranho aquele cara ali de caiaque, parando no meio do mar para uma prosa. Aí ele disse que minha mulher tava desesperada, lá no bar. E que ele tinha saído atrás do cadáver, praticamente. Mas viu que eu estava bem. Perguntei se ele ia voltar ao boteco, ele disse que sim, pedi que reiterasse meu encontro com a Patrícia ali naquela praia. Ele partiu remando. Peguei uns jacarés com os surfistas, que estranharam meu surgimento do meio do mar, e fui até a praia. Fiquei esperando um pouco, até que meu carro surgiu buzinando muito e com raiva, entrei rapidinho, com Patrícia gritando e chorando.
Depois fiquei sabendo do ocorrido: que ela foi me seguindo com os olhos; depois de um determinado momento, eu sumi de vista. Perguntou se alguém conseguia ver-me, conseguiu um binóculo, não me achou, começou a ser recriminada por todos no bar, "como você deixou...", tentou convencer uns pescadores a irem dar uma busca de barco, os caras não quiseram, com os barcos já no abrigo, e a preguiça vespertina de quem escolheu ser pescador. Chorou, gritou, desacatou, ameaçou, conseguiu constranger o cara do caiaque.
Não foi a primeira vez que esse tipo de coisa aconteceu, mas foi a última. Nunca mais nadei no mar, a não ser localmente, pegando jacaré, surfando... essas coisas. Tudo bem. Mas em janeiro passei um mês na praia, Costão do Santinho. Fui sem carro. Um mês dentro de um condomínio. Abrigado. Comendo nos mesmo lugares todo dia. Hummm... minha barba começou a cair! Estressei.
É isso. O abrigo em demasia estressa, a falta de secreção das adrenais, de excitação e novidade causa-me uma uma espécie de síndrome de abstinência. Meu DNA provavelmente não foi selecionado para esse tipo de vida. Digo isso vendo minha filha. Acordada, em casa, ela dura 20 minutos. Depois desse prazo, tem que sair, pendurar-se nos brinquedos da praça. Mesmo DNA. Não tem dois anos, ainda, e já quebrou dois dentes, a sapeca.
Minha vida sempre foi assim: compatibilizar esses impulsos, que são de vida, mas também de morte, com uma existência relativamente normal, criando filhos, tendo um lar, plano de saúde, caminhando para uma velhice amparada. Mas meu cérebro, a cada par de anos, arma situações para que eu abandone a estabilidade. E eu depois tenho que reconstruí-la. Talvez eu tenha nascido para ser um aventureiro, mesmo, um vagabundo, um gauche na vida. Um anjo meio torto deve ter envenenado meus ouvidos. Enquanto não vem pra me buscar, jogo playstation.
Tuesday, July 25, 2006
Os Prazeres e os Riscos
Faz pouco mais de um mês que o Alê morreu. Era o namorado da Helô, mais do que amigo meu, mas mesmo assim sua morte foi chocante. Daquelas de dar frio na barriga, principalmente porque todos que me conhecem viraram-se na minha direção pra dizer, unanimemente: "tá vendo, Dimi???!!!!"
Meses atrás, Alê e Helô foram jantar em casa, quer dizer, pizza do Braz e muito vinho. Ele me contou sobre o avião que ele estava comprando em forma de kit, que iria ser montado em Monte Alto e que viria a cair no vôo inaugural, causando sua morte.
A Patrícia já nem queria que eu conversasse sobre esses assuntos com ele. Ela provavelmente acha que eu seja potencialmente um suicida acidental. De fato, sou piloto de aviões pequenos e tenho uma certa intimidade com esse tipo de aventura, o que pode parecer loucura para muita gente que tem medo de avião. Já pilotei máquinas de pau e trapo, como a gente chamava, aviões que não têm sequer sistema elétrico, a partida é na mão do mecânico, que grita "contato!" e gira a hélice, como nos filmes antigos. Esses aviões, Paulistinhas e Pipers, não tinham fuselagem de metal, ou de fibra, ou de qualquer material rígido: eram feitos de tela impermeabilizada, montada sobre uma estrutura de tubos metálicos. Nem assoalho tinha, a gente tinha que pisar nesses tubos para não furar o avião. Não tinha rádio, nem luz, nem nada. A impermeabilização da tela era feita com Dope, uma substância muito inflamável. Se o avião pegasse fogo, já era. Às vezes, a gente tirava a porta para voar com o ventão entrando, o céu invadindo a cabine violentamente.
Quando eu fazia o curso do brevê, aos 15 anos de idade, a gente tinha aulas teóricas aos sábados, no aeroclube de Londrina. Num sábado daqueles, um dos paulistinhas do aeroclube caiu durante o pouso. O piloto era um tal de Custódio, se não me engano, que havia acabado de tirar o brevê, e estava voando solo. Saímos todos correndo da sala de aula, ante a notícia. No horizonte, na cabeceira 30, via-se uma coluna de fumaça preta subindo muito densa e rápida, e ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Os bombeiros chegaram rapidamente, mas não puderam fazer muita coisa. Os instrutores tentavam impedir-nos de ir até o local do acidente, mas quem conseguiu correr os 5 km da pista e chegar até a cabeceira oposta disse que não sobrara muita coisa para ser vista, a explosão do tanque de gasolina fez inflamar-se o dope da tela e o avião rapidamente sumiu nas chamas. Diziam que o corpo do piloto ficou reduzido a um objeto carbonizado de aproximadamente meio metro. Lembro que esse encolhimento impressionou-me muito, na época, mais pelo inusitado do fenômeno do que pelo medo da morte. Porque: pensa que alguêm considerou desistir de voar? Isso nem passou pela minha cabeça...
O Alê explicou-me que seu avião era um projeto muito bom, mostrou-me na internet os desenhos, algumas fotos de modelos prontos que realmente pareciam muito melhores do que os meus paulistinhas de pau e trapo. Gostei. Achei seguro, sob a reprovação de Patrícia e Helô.
Alguns meses depois, numa quinta-feira, Helô ligou de Barretos comunicando que Alê havia morrido. Que havia ido escondido ao hangar em Monte Alto, onde o avião estava sendo montado já com algum atraso; essas coisas nunca acontecem no prazo. Os mecânicos que iriam testar e ajustar o motor ainda nem haviam chegado de Goiânia para finalizar a montagem. Mesmo assim, Alê insistiu em voar com o avião ainda incompleto. No quarta, queria decolar sem pára-brisa! Não conseguiu convencer os mecânicos. Na quinta, exasperado com o fim de semana que se esgotava, ludibriou a todos e decolou, sem que os tais mecânicos de Goiânia tivessem tido a chance de terminar os ajustes do motor. Minutos depois, a polícia recebeu um telefonema de um sitiante, relatando a queda de um avião em sua propriedade.
O funeral foi muito triste, cheio de gente inconformada com a gratuidade dessa morte de um cara de vinte e poucos anos anos. Helô teve de lidar com os aspectos burocráticos e absurdos, como reconhecer o cadáver no IML de Monte Alto, providenciar o traslado do corpo, dar depoimentos à polícia, ir buscar os documentos do namorado no hangar. Chegou ao velório já como viúva experiente, íntima do sofrimento, repleta da perda, desenvolta na tristeza sua e dos familiares e dos amigos...
Chorou muito. Quando estávamos no crematório, ela chegou até mim e perguntou se eu tinha cds no carro, pois as músicas que havia no repertório para a cerimônia eram terríveis. (As pessoas acham que, por eu ser músico profissional, devo sempre ter uma solução para dilemas musiciais ou sonoros. Algo como um médico na platéia.) Meus cds do carro não prestavam para a cerimônia, a menos que Deep Purple fosse uma opção, mas concordamos que não ficaria bem. Helô juntou umas canções de uns discos da prima, e contou uma história linda através dos versos dessas músicas. Não vou descrever aqui o conteúdo, também porque não me lembraria com exatidão. Mas, quando postas naquele contexto do crematório, as canções falavam de um amor jovem, de uma vida arriscada, de saudade, de lembrança... ditos de uma forma que soou muito pessoal e sincera. As pessoas começaram a entender, e a falar. E a sorrir chorando. Foi uma homenagem belíssima, que acabou por reconfortar a todos que estavam participando daquele momento terrível e constrangedor.
Na saída, pessoas cumprimentavam-me pela escolha das músicas, achando que fosse obra minha. Eu explicava que não.
Faz pouco mais de um mês que o Alê morreu. Era o namorado da Helô, mais do que amigo meu, mas mesmo assim sua morte foi chocante. Daquelas de dar frio na barriga, principalmente porque todos que me conhecem viraram-se na minha direção pra dizer, unanimemente: "tá vendo, Dimi???!!!!"
Meses atrás, Alê e Helô foram jantar em casa, quer dizer, pizza do Braz e muito vinho. Ele me contou sobre o avião que ele estava comprando em forma de kit, que iria ser montado em Monte Alto e que viria a cair no vôo inaugural, causando sua morte.
A Patrícia já nem queria que eu conversasse sobre esses assuntos com ele. Ela provavelmente acha que eu seja potencialmente um suicida acidental. De fato, sou piloto de aviões pequenos e tenho uma certa intimidade com esse tipo de aventura, o que pode parecer loucura para muita gente que tem medo de avião. Já pilotei máquinas de pau e trapo, como a gente chamava, aviões que não têm sequer sistema elétrico, a partida é na mão do mecânico, que grita "contato!" e gira a hélice, como nos filmes antigos. Esses aviões, Paulistinhas e Pipers, não tinham fuselagem de metal, ou de fibra, ou de qualquer material rígido: eram feitos de tela impermeabilizada, montada sobre uma estrutura de tubos metálicos. Nem assoalho tinha, a gente tinha que pisar nesses tubos para não furar o avião. Não tinha rádio, nem luz, nem nada. A impermeabilização da tela era feita com Dope, uma substância muito inflamável. Se o avião pegasse fogo, já era. Às vezes, a gente tirava a porta para voar com o ventão entrando, o céu invadindo a cabine violentamente.
Quando eu fazia o curso do brevê, aos 15 anos de idade, a gente tinha aulas teóricas aos sábados, no aeroclube de Londrina. Num sábado daqueles, um dos paulistinhas do aeroclube caiu durante o pouso. O piloto era um tal de Custódio, se não me engano, que havia acabado de tirar o brevê, e estava voando solo. Saímos todos correndo da sala de aula, ante a notícia. No horizonte, na cabeceira 30, via-se uma coluna de fumaça preta subindo muito densa e rápida, e ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Os bombeiros chegaram rapidamente, mas não puderam fazer muita coisa. Os instrutores tentavam impedir-nos de ir até o local do acidente, mas quem conseguiu correr os 5 km da pista e chegar até a cabeceira oposta disse que não sobrara muita coisa para ser vista, a explosão do tanque de gasolina fez inflamar-se o dope da tela e o avião rapidamente sumiu nas chamas. Diziam que o corpo do piloto ficou reduzido a um objeto carbonizado de aproximadamente meio metro. Lembro que esse encolhimento impressionou-me muito, na época, mais pelo inusitado do fenômeno do que pelo medo da morte. Porque: pensa que alguêm considerou desistir de voar? Isso nem passou pela minha cabeça...
O Alê explicou-me que seu avião era um projeto muito bom, mostrou-me na internet os desenhos, algumas fotos de modelos prontos que realmente pareciam muito melhores do que os meus paulistinhas de pau e trapo. Gostei. Achei seguro, sob a reprovação de Patrícia e Helô.
Alguns meses depois, numa quinta-feira, Helô ligou de Barretos comunicando que Alê havia morrido. Que havia ido escondido ao hangar em Monte Alto, onde o avião estava sendo montado já com algum atraso; essas coisas nunca acontecem no prazo. Os mecânicos que iriam testar e ajustar o motor ainda nem haviam chegado de Goiânia para finalizar a montagem. Mesmo assim, Alê insistiu em voar com o avião ainda incompleto. No quarta, queria decolar sem pára-brisa! Não conseguiu convencer os mecânicos. Na quinta, exasperado com o fim de semana que se esgotava, ludibriou a todos e decolou, sem que os tais mecânicos de Goiânia tivessem tido a chance de terminar os ajustes do motor. Minutos depois, a polícia recebeu um telefonema de um sitiante, relatando a queda de um avião em sua propriedade.
O funeral foi muito triste, cheio de gente inconformada com a gratuidade dessa morte de um cara de vinte e poucos anos anos. Helô teve de lidar com os aspectos burocráticos e absurdos, como reconhecer o cadáver no IML de Monte Alto, providenciar o traslado do corpo, dar depoimentos à polícia, ir buscar os documentos do namorado no hangar. Chegou ao velório já como viúva experiente, íntima do sofrimento, repleta da perda, desenvolta na tristeza sua e dos familiares e dos amigos...
Chorou muito. Quando estávamos no crematório, ela chegou até mim e perguntou se eu tinha cds no carro, pois as músicas que havia no repertório para a cerimônia eram terríveis. (As pessoas acham que, por eu ser músico profissional, devo sempre ter uma solução para dilemas musiciais ou sonoros. Algo como um médico na platéia.) Meus cds do carro não prestavam para a cerimônia, a menos que Deep Purple fosse uma opção, mas concordamos que não ficaria bem. Helô juntou umas canções de uns discos da prima, e contou uma história linda através dos versos dessas músicas. Não vou descrever aqui o conteúdo, também porque não me lembraria com exatidão. Mas, quando postas naquele contexto do crematório, as canções falavam de um amor jovem, de uma vida arriscada, de saudade, de lembrança... ditos de uma forma que soou muito pessoal e sincera. As pessoas começaram a entender, e a falar. E a sorrir chorando. Foi uma homenagem belíssima, que acabou por reconfortar a todos que estavam participando daquele momento terrível e constrangedor.
Na saída, pessoas cumprimentavam-me pela escolha das músicas, achando que fosse obra minha. Eu explicava que não.
Saturday, July 22, 2006
Em Londrina
Hoje fui correr pela cidade, e passei na frente do Valentino, um bar que eu frequentava na década de 80, quando eu visitava Londrina. Houve também uns seis meses que eu passei por aqui, durante uma pausa no meu curso de medicina, em que ia toda noite, praticamente, nesse bar. Hoje vi que demoliram o Valentino. Está em ruínas, só com as fundações, uns restos de parede e umas colunas. Parece uma ruína romana, por causa das colunas.
Andando pelo sítio arqueológico, reconheci o assoalho da entrada, a escadinha que levava à varanda, em que nos sentávamos nos degráus, pra ficar bebendo, fumando e olhando o céu. Vi a base do balcão, um bom balcão de madeira escura, daqueles altos, de bar decente, ao qual você pode se enconstar e apoiar os cotovelos mesmo de pé, ou sentar-se em banquetas altas de madeira com estofado de couro. Acima do balcão havia um grande espelho inclinado, pelo qual você via o bar inteiro e então não precisava virar-se pra controlar o movimento ou fazer contato visual com alguém. Útil.
Cheguei ao sórdido assoalho do banheiro, onde eu vomitei tantas vezes, intoxicado pelo uísque ruim que nosso dinheiro podia pagar, na época. Num resto de parede, tinha um símbolo do anarquismo, que na época era praticamente o símbolo do Valentino, e da nossa geração, meio perdida entre os anos 60 e o final do século XX.
No interior, essas coisas se amplificam. Quem é maluco, é maluco mesmo. Não tem muita noção de limite, não tem muita gente com quem se comparar. Afinal, tem menos maluco na cidade como um todo. Maluco de capital, muitas vezes, é maluco de boutique, que parece maluco, mas se preserva, afinal. Em Londrina, naquela época, a galera detonava. A gente ficava toda noite conversando bobagem, bebendo muito, fumando muito, intoxicados por outras drogas disponíveis, até que rolava no som "Take a Walk On The Wild Side", do Lou Reed, ou "Zoot Alllures", do Zappa, e alguém aumentava o volume. Quando pintava uma festa, ia todo mundo, e o bar ficava vazia por um momento. Se a festa não prestasse, todo mundo voltava pra lá.
(As patricinhas de Londrina, também, são mais radicais, mais perfeitamente frívolas do que seus originais paulistanos. Vestem-se com um rigor muito maior, as marcas de roupa exatas, as idiossincrasias mais homogênias. São lindíssimas, sempre, por algum prodígio sócio-ambiental com prováveis repercussões endócrinas. Sempre estão à procura da balada perfeita. Em geral, ficam entediadas onde estão, querendo ir pra onde não estão, ou ligar pra quem não está lá.)
Na madrugada, havia a macarronada do Valentino, que salvava os estômagos açoitados pela boêmia. Aliás, açoitávamos nossos estômagos! A gente ia todo dia a esse Valentino. Na cidade, falavam que era um bar gay, mas todo mundo ia. Era a sede da cultura e da contracultura londrinense. Todo mundo que pensava ia lá, os que queriam fingir que pensavam algo também compareciam. No final de semana, mesmo a playboyzada frequentava. Sem fingir que pensava coisa alguma. Isso é uma coisa interessante a respeito do interior, as castas sociais convivem mais próximas. Os pés-rapados da minha época conheciam os ricaços, podiam até vomitar lado a lado no banheiro do Valentino, se dessem sorte. Ou azar, posto que é vômito.
Mas a sensação geral daquela época é bela. Um tempo em que éramos mais ingênuos, certamente, mais inseguros, talvez, mas em que experimentávamos mais a vida, em que vivíamos em grupo, pós-adolescentes, procurando uma identidade. Procurando ser algo que fizesse um sentido pessoal para cada um de nós, mesmo se isso fosse uma cirrose hepática precoce e inconseqüente. Algo diferente do que nossos pais pensavam que devêssemos ser. O Valentino fez parte desse caminho.
No muro do bar, picharam: "... a força da grana que ergue e destrói coisas belas..."
...
...Piegas!!!!!
Um beijo para: Lu, Shirley, Oswaldo, Lena, Claudinha, Carlão, Paulo, Maurício, Betina, Aninha...
P.S.: Acabei de falar com uma amiga dessa época, no MSN, ela falou que reinauguraram o Valentino noutro lugar, e estão, na verdade, tranferindo pra lá tudo o que era da casa original. A vontade é de dizer: "deixa quieto!!!"
Wednesday, July 19, 2006
Ontem houve o show d'Os Improváveis. Numa avaliação brevíssima:
- a banda tocou muito bem.
- o som tava muito ruim.
- o público estava fraco, 3/4 da casa. Mas tá bom pra uma terça depois da meia-noite.
Tinha muito amigo, na platéia. Isso complica a avaliação. Minha idéia é fazer mais roubadas, com público real. Não sei se a banda encara.
- a banda tocou muito bem.
- o som tava muito ruim.
- o público estava fraco, 3/4 da casa. Mas tá bom pra uma terça depois da meia-noite.
Tinha muito amigo, na platéia. Isso complica a avaliação. Minha idéia é fazer mais roubadas, com público real. Não sei se a banda encara.
Tuesday, July 18, 2006
Sunday, July 16, 2006
(ilustração: Fernando Botero, "The Bathroom", 1993.)
Libretto
Achei uma caixa de papelão contendo documentos meus do início da década passada, do período em que vivi em Boston. Parecem pertencer a outra pessoa. Tem uma texto que eu escrevi na época que tem ainda alguma graça, acho. Lá vai:
A ópera italiana, no final do século XIX, poderia ser definida como uma tipo de peça musical que termina com três cadáveres no palco, no mínimo.
Acto III
Pilombetta, a Condessa da Sabatina, encontra-se em seus aposentos à espera de Agnolotti, seu amante. Canta a famosa ária "Dio, come ti amo", uma apologia do canibalismo enquanto expressão religiosa e amorosa. Como de costume, sente-se sufocada pela culpa que a relação ilegítima, iniciada há nove anos e meio, acarreta, e pela partida de Cappadocci, seu marido, rumo a Waterloo. Os amantes haviam plantado informações falsas a respeito da suposta presença de Napoleão por aquelas paragens, a fim de conseguir privacidade por algumas semanas. O que Pilombetta não sabe é que Agnolotti, desejando a mulher somente para si, sabia que Napoleão estaria de fato em Waterloo, com um exército de proporções hollywoodianas. O que Agnolotti não sabia, porém, é que Wellington também seguia rumo ao mesmo campo de batalha, somando forças com com o famoso esquadrão Napolitano de Capadocci, temido tanto pela bravura quanto pelo bafo de alho. Nesse ponto, a platéia é que não sabe mais nada, pois perdera o fio da meada no meio do segundo ato, impacientes com a gritaria.
Cenna I:
Pillombetta: "Dio, comme tia amo! Dá-me un cornetto, molto crocante..."
(entra Agnolotti)
Agnolotti: "É piu cremmoso!"
Pillombetta: "É da Gellato!"
Agnolotti: "Cara mia, enfine soli!"
Pillombetta: "Non, non, per favuori! Oggi non, io sonno indisposta, dolore da cappo....
Agnolotti: "Ma Io sonno un asno, o u quê? Io sonno cansatto di parlare per tu non ire a il duommo di Doleres, questa Spagnolla non presta..."
Pillombetta: "Agnolotti, sei un asno, é vero, ma per otri razzioni. La dolce vita di luci qui hai promisatto a me é , in veritá, una fontanna di trevi..."
Agnolotti: "Ingratta! Discordate di quella volta qui fuommo jantare al Michellucio..."
Pillombetta: "Basta! Di questo giorno adellante Io sonno una donna líbera! Io sonno cansatta di calcio i fuórmula uno. Io voglio il Silvio Santi! Io sonno líbera, líbera, líbera..."
Agnolotti (sarcástico): "...e Io sono il cento-avanti..."
Pillombetta: "Io non sonno a gioccare. Io voglio il divuórcio."
Agnolotti (pragmático): "Megliori parlare con vostro maritto. Veni qüi, veni..."
Pillombetta (tentando desvencilhar-se dos abraços): "Alto! Non veni qui non teni!"
Agnolotti: "Cara mia, Io sonno apassionatto..."
Pillombetta: "Alto lá con tue mani! Ogiorno Io non voglio, tu solo cogita en questo..."
Agnolotti (abrindo o champagne): "Regardere: champagne, per brindare un encontro de due almi qui si ami...
Pillombetta: "Due almi? Vá benne! Regardere il volumino in tue pantalonni: ha insuflato il caneloni, taratto!"
Agnolotti: "Cara mia, ma Io sono victimato per tuo corpore, per tua bolognesa empinata, i rondelli a quasi explodire il mezza-taça... veni qui, veni..."
(ouvem-se passos no corridori)
Pillombetta: "Mio maritto!"
Agnolotti (para a platéia): "Ma non é possibile!"
Pillombetta: "Dentro d'il armani, presto!"
Cappadocci (entrando no quarto, aos gritos): "Victória!!!!"
Pillombetta: "Victória una ova, caffagesto, Io sonno Pillombeta, tua sposa! "
Cappadocci: "Ma Io parlo de la bataglia, en qui derrotammo il exercito di Napoleone..."
Pillombetta: "Vá benne, vá benne... ma non mi pisa con le buotti imundi n'il carpeto, solo perque víncite tuo mísero pugilatto."
Capparadocci: "Calma, qui l'Europa sei nostra."
Pillombetta: "...e vamo pedire una pizza, qui ogiorno Io non faccio il jantare."
Cappadocci: "Hummm, buona idea, una pizza, unas coca, musica molto romântica..."
Pillombetta: "Ma, otro? Hommi son tutti ugualli..."
Cappadocci: "Ma que otro? Que otro? Que escondere di me?"
Pillombetta: "Niente! Io non voi escondere niente di te, non piu! Io voglio il divuorcio, i la guarda di bambinni!"
Agnolotti (traindo-se, de dentro do armário): "Audácia da Pillombetta..."
Capadocci (ouvindo o amante): "Qui és questo?"
(abrindo o armário): "Ahá!!!!"
Agnolotti: "Gulp!"
Pillombetta: "Oh!"
Capaddocci: "Maledetta!"
Pillombetta: "Io puosso explicare..."
Agnolotti: "Scusa, ma io teno que ire..."
Cappadocci: " Carcamano!"
Pillombetta: "Larga!"
Cappadocci: "Putanesca!"
Inesperadamente, Agnolotti acaba matando o marido da amante, estrangulando-o com a echarpe que estava guardada no armário. Nesse momento, entra no quarto Victória, a amante de Cappadocci, que vinha pedir o dinheiro do aluguel, e mata Agnolotti com um tiro à queima-roupa, literalmente. Agnolotti cai dentro do guarda-roupa e metade da platéia acorda com o tiro. A outra metade já foi embora. Pillombetta, audaciosa, investe contra Victória, enterrando em suas costas a adaga que sempre levava na cinta-liga. Olha desolada para os cadáveres e suicida-se, tomando o veneno que sempre levava no decote. Perigosa, essa Pillombetta. Chega o entregador de pizza e também se mata. Pessoas se atiram do foyer e do balcão nobre. O maestro tenta atirar-se na platéia, mas é contido pelos primeiros-violinos. O New York Times exige uma intervenção da ONU, cobrando de Clinton uma postura mais firme na política externa. O presidente Itamar Franco diz-se "horrorizado" com o acontecido e declara que tomará todas as providências cabíveis para a mais rigorosa apuração dos fatos.
Thursday, July 13, 2006
Ponto de Vista
O legal de sair de avião de São Paulo, além do fato de sair de São Paulo, é quando a gente vê a borda do campo, ou seja, a beirada da Serra do Mar, despencando na Baixada Santista. Dá pra ver a umidade do mar subindo ao encontrar o paredão da serra, e formando uma barreira de nuvens. É uma visão muito concreta de algo que a gente sabe que acontece, na teoria, mas quase nunca tem um ponto de vista distante o suficiente pra ver acontecendo.
Veio a lembrança da época em que eu era aluno de medicina. Numa cirurgia, lembro que o professor apontou pra um órgão interno, sei lá o que era, e mostrou uma infecção. Era algo que a gente raramente via ao vivo, algo que se tratava com antibióticos sistêmicos, via oral, mas, com o acesso que tínhamos ao tecido infeccionado, o cara simplesmente aplicou um pouco de antiséptico, com uma gaze, e curou a infecção. Simples assim. É o exato oposto das nuvens na serra. Uma perspectiva mais aproximada.
No caminho do aeroporto, ouvi o Jabor, com voz de ressaca, enxovalhar a situação da segurança pública em São Paulo, daquele jeito apocalíptico dele, demonstrando a entrada do país na era das situações sem saída, quando nada tem mais solução, desde a roubalheira no governo até os ataques do PCC, passando pela seleção e o Rubinho Barrichello. Ontem, numa conversa com uma amiga advogada, aprendi que nossas piores paranóias a respeito do judiciário podem ser justificadas; ela me contou histórias sobre a venalidade de juízes, causos de arrepiar; nada tem mais jeito mesmo, são todos uns filhos da puta, o mundo é uma bosta, e salve-se quem puder.
Eu, que sempre fui um otimista incorrigível, me sinto perdendo a leveza. Quase acredito na claustrofobia de um mundo falido, na avalanche de merda que vai soterrar todo o Ocidente, na conspiração dos homens egoístas que vão tornar impossíveis todos os propósitos dos homens justos. Tudo parece difícil, os buracos são sempre mais embaixo, as intenções são sempre obscuras, as razões reais são sempre encobertas pela mentira e a dissimulação, os esforços positivos são sempre soterrados pela preguiça e a conivência com as más intenções.
Mas, aí, o avião passa a restinga da Marambaia, que parece de mentira, de tão desenhada, entra por trás da baía de Guanabara, passa ao lado do Redentor, cruza no través da pista, faz um 270º na vertical, lambendo Niterói, os estaleiros com as plataformas de petróleo, encara a Rio-Niterói no contra-luz, os navios ao largo, aguardando a vez de entrar no porto, a Ilha Fiscal, alinha com a pista e toca como um sabão, tudo sem variar o motor.
Tentei achar o comandante, na saída, para dar os parabéns, mas não deu. Peguei o táxi mais sincronizado com o Cosmos, que é bem maior que o pessimismo. Às vezes falta perspectiva, falta olhar de longe. Às vezes falta aproximar mais. Às vezes tem que enxergar o abismo com olhos de engenheiro, tentando determinar o que precisa para construir a ponte. Outras vezes, tem que ter o olhar poético e apreciar a beleza do vazio.
O legal de sair de avião de São Paulo, além do fato de sair de São Paulo, é quando a gente vê a borda do campo, ou seja, a beirada da Serra do Mar, despencando na Baixada Santista. Dá pra ver a umidade do mar subindo ao encontrar o paredão da serra, e formando uma barreira de nuvens. É uma visão muito concreta de algo que a gente sabe que acontece, na teoria, mas quase nunca tem um ponto de vista distante o suficiente pra ver acontecendo.
Veio a lembrança da época em que eu era aluno de medicina. Numa cirurgia, lembro que o professor apontou pra um órgão interno, sei lá o que era, e mostrou uma infecção. Era algo que a gente raramente via ao vivo, algo que se tratava com antibióticos sistêmicos, via oral, mas, com o acesso que tínhamos ao tecido infeccionado, o cara simplesmente aplicou um pouco de antiséptico, com uma gaze, e curou a infecção. Simples assim. É o exato oposto das nuvens na serra. Uma perspectiva mais aproximada.
No caminho do aeroporto, ouvi o Jabor, com voz de ressaca, enxovalhar a situação da segurança pública em São Paulo, daquele jeito apocalíptico dele, demonstrando a entrada do país na era das situações sem saída, quando nada tem mais solução, desde a roubalheira no governo até os ataques do PCC, passando pela seleção e o Rubinho Barrichello. Ontem, numa conversa com uma amiga advogada, aprendi que nossas piores paranóias a respeito do judiciário podem ser justificadas; ela me contou histórias sobre a venalidade de juízes, causos de arrepiar; nada tem mais jeito mesmo, são todos uns filhos da puta, o mundo é uma bosta, e salve-se quem puder.
Eu, que sempre fui um otimista incorrigível, me sinto perdendo a leveza. Quase acredito na claustrofobia de um mundo falido, na avalanche de merda que vai soterrar todo o Ocidente, na conspiração dos homens egoístas que vão tornar impossíveis todos os propósitos dos homens justos. Tudo parece difícil, os buracos são sempre mais embaixo, as intenções são sempre obscuras, as razões reais são sempre encobertas pela mentira e a dissimulação, os esforços positivos são sempre soterrados pela preguiça e a conivência com as más intenções.
Mas, aí, o avião passa a restinga da Marambaia, que parece de mentira, de tão desenhada, entra por trás da baía de Guanabara, passa ao lado do Redentor, cruza no través da pista, faz um 270º na vertical, lambendo Niterói, os estaleiros com as plataformas de petróleo, encara a Rio-Niterói no contra-luz, os navios ao largo, aguardando a vez de entrar no porto, a Ilha Fiscal, alinha com a pista e toca como um sabão, tudo sem variar o motor.
Tentei achar o comandante, na saída, para dar os parabéns, mas não deu. Peguei o táxi mais sincronizado com o Cosmos, que é bem maior que o pessimismo. Às vezes falta perspectiva, falta olhar de longe. Às vezes falta aproximar mais. Às vezes tem que enxergar o abismo com olhos de engenheiro, tentando determinar o que precisa para construir a ponte. Outras vezes, tem que ter o olhar poético e apreciar a beleza do vazio.
Monday, July 10, 2006
O Batismo de Bebel
Chegamos à igreja já com alguma culpa: dizem que só se aceitam pais casados na Igreja, para o batismo dos filhos, certamente por falta de vagas para fiéis na Igreja Católica... Mas fomos assim mesmo fazer o curso, dispostos a mentir, caso fôssemos inquiridos.
Não foi necessário. A senhora que ministrava o curso cheirava a colégio de freiras, autoritária e irrefletida, imbuída dos poderes advindos da sua intimidade com o divino, aparentemente. Mas não era freira, depois aprendemos tratar-se de uma Ministra Extraordinária da Eucaristia. Exercia seus poderes com rigor militar, exigindo o preenchimento imediato de uma ficha de cadastro bastante ambígua. Patrícia entrou em pânico, errou meu nome, depois preencheu nome do pai no lugar do nome da mãe e teve de ser substituída. Joguei um charme para a velhota, ela comprou, chegou a sorrir, a danada.
Meia hora depois, quando ninguém mais tinha nádegas para enfrentar o discurso da senhora, dei-me conta de ser, talvez, o único ateu convicto na sala. Ateu, não, agnóstico, vá lá. Mas também o único que sabia quais eram os 7 sacramentos da Igreja, e o único que lia a Bíblia com alguma frequência. Esses paradoxos da vida.
A senhora leu, lá, umas coisas a respeito dos simbolismo do batismo. Essa história do renascimento é que me interessa. O Cristo morrendo e ressuscitando, a água afogando e fazendo renascer o fiel em Cristo. Tudo remete à morte, ou melhor, à esperança de uma vida após a morte, a continuidade, ou seja: a não-morte; vida eterna. Isso sim, é sedutor.
Eu li num dicionário de filosofia que a coisa comum a todas as religiões não seria Deus, ou deuses, ou divindades, mas sim a proposição de uma solução para o dilema da morte. É tudo o que interessa, para quem está vivo: não morrer ou, caso seja realmente indispensável a morte, dar um jeito de voltar, ou de continuar num outro lugar. Deve ser uma delícia acreditar nisso, espero que um dia eu consiga.
Tem gente que acha muito estranho que eu queira batizar a Bebel. Eu acho conveniente. Eu agradeço a oportunidade de ter sido educado tendo um modelo maniqueísta para moldar meus princípios, o Bem contra o Mal, etc. Gostaria que minha filha pudesse contar com essa rede de segurança, também. A dúvida do agnóstico não é brincadeira de criança. Quero que ela cresça acreditando em Papai do Céu, sem medo da finitude absoluta. Amém.
Chegamos à igreja já com alguma culpa: dizem que só se aceitam pais casados na Igreja, para o batismo dos filhos, certamente por falta de vagas para fiéis na Igreja Católica... Mas fomos assim mesmo fazer o curso, dispostos a mentir, caso fôssemos inquiridos.
Não foi necessário. A senhora que ministrava o curso cheirava a colégio de freiras, autoritária e irrefletida, imbuída dos poderes advindos da sua intimidade com o divino, aparentemente. Mas não era freira, depois aprendemos tratar-se de uma Ministra Extraordinária da Eucaristia. Exercia seus poderes com rigor militar, exigindo o preenchimento imediato de uma ficha de cadastro bastante ambígua. Patrícia entrou em pânico, errou meu nome, depois preencheu nome do pai no lugar do nome da mãe e teve de ser substituída. Joguei um charme para a velhota, ela comprou, chegou a sorrir, a danada.
Meia hora depois, quando ninguém mais tinha nádegas para enfrentar o discurso da senhora, dei-me conta de ser, talvez, o único ateu convicto na sala. Ateu, não, agnóstico, vá lá. Mas também o único que sabia quais eram os 7 sacramentos da Igreja, e o único que lia a Bíblia com alguma frequência. Esses paradoxos da vida.
A senhora leu, lá, umas coisas a respeito dos simbolismo do batismo. Essa história do renascimento é que me interessa. O Cristo morrendo e ressuscitando, a água afogando e fazendo renascer o fiel em Cristo. Tudo remete à morte, ou melhor, à esperança de uma vida após a morte, a continuidade, ou seja: a não-morte; vida eterna. Isso sim, é sedutor.
Eu li num dicionário de filosofia que a coisa comum a todas as religiões não seria Deus, ou deuses, ou divindades, mas sim a proposição de uma solução para o dilema da morte. É tudo o que interessa, para quem está vivo: não morrer ou, caso seja realmente indispensável a morte, dar um jeito de voltar, ou de continuar num outro lugar. Deve ser uma delícia acreditar nisso, espero que um dia eu consiga.
Tem gente que acha muito estranho que eu queira batizar a Bebel. Eu acho conveniente. Eu agradeço a oportunidade de ter sido educado tendo um modelo maniqueísta para moldar meus princípios, o Bem contra o Mal, etc. Gostaria que minha filha pudesse contar com essa rede de segurança, também. A dúvida do agnóstico não é brincadeira de criança. Quero que ela cresça acreditando em Papai do Céu, sem medo da finitude absoluta. Amém.
Sunday, July 09, 2006
A Verdadeira Bruxa
À avalanche de asneiras ditas sobre a seleção, junto agora as minhas.
Eu acho que o problema tem duas vertentes principais:
1. O Brasil não tem muito do que se orgulhar, e acaba depositanto muita ansiedade sobre a seleção. Brasileiro acha que Copa é uma guerra onde a honra e o valor da Nação serão afirmados ou negados. Esquece que futebol é esporte. Esquece que os jogadores são seres humanos. Os jogadores, uns baguais sem muita estrutura psicológica, acabam amarelando, sob tamanha pressão. Amarelaram em 98, amarelaram agora. Às vezes ganham a despeito disso, quando não são francos favoritos e têm uma trégua do cagaço, e/ou a tabela ajuda, botando a gente contra Turquia, China, Bélgica, etc, até a semifinal. Quando perdem, todo mundo cai de pau, também de maneira desproporcional.
2. Deve haver vários esquemas de favorecimento na escalação da seleção. Isso explicaria a longevidade do binômio Parreira/Zagalo e de outro, Cafu/Roberto Carlos. E a escalação da maior parte do time. Tem a história do dinheiro do Pita, empresário do Ronaldo, encontrado na conta do Parreira. Tem o fato do João Havelange ter sido o cara que inventou a rota futebolístico-comercial entre Brasil e Europa, quando moldou o futebol e a Copa na forma de um negócio bilionário. O cara botou o Ricardo Teixeira, seu genro, na CBF, enquanto tratou de comandar a FIFA e fez do Blatt seu sucessor. O Ricardo Teixeira a gente conhece. Enfim, ficam armando condições de vender nossos talentos para os times endinheirados dos países endinheirados. Depois, têm que sustentar a fama desses jogadores, garantindo-lhes os holofotes da seleção. Isso sem contar as pressões dos patrocinadores, tanto da CBF quanto dos jogadores, individualmente.
Pois bem, para tudo isso funcionar, tem de haver a conivência da comissão técnica.
Quando eu era criança, a primeira copa a que eu assisti foi a de 1974, e achei que havíamos enterrado o Zagallo; eu vi até o caixão dele, no protesto que houve na avenida principal, depois da atuação vexaminosa da seleção. E o cara reaparece como o "velho Lobo"! Vá se foder! O Galvão deve levar um cachezinho, também. E o Parreira, que beleza, preparador físico, técnico de Gana, depois de uma meia-dúzia de times, acaba tarimbado para ser o cara. Ninguém estranhou?
Aí, os caras que estão na panela, tipo o Roberto Carlos, claro que são jogadores talentosos, mas também são produtos que têm de ser explorados. E devem para todos que os colocaram no esquema, empresários, CBF, patrocinadores, clubes, comissão técnica...
Todos desejam longevidade ao esquema. Por isso, morrem de medo de sair da panela. A atitude de Roberto Carlos, principalmente, sempre foi essa: de mostrar a soberba de titular absoluto. Quando ele chacoalhava o pezinho, deitado na grama, no banco do jogo contra o Japão, estava querendo dizer isso: "daqui não saio, daqui ninguém me tira! Sou o fodão, no jogo que vem esses moleques saem e eu volto pro meu trono. Ninguém vai me mandar de volta para Garça", Araras, ou seja lá de onde ele veio.
À avalanche de asneiras ditas sobre a seleção, junto agora as minhas.
Eu acho que o problema tem duas vertentes principais:
1. O Brasil não tem muito do que se orgulhar, e acaba depositanto muita ansiedade sobre a seleção. Brasileiro acha que Copa é uma guerra onde a honra e o valor da Nação serão afirmados ou negados. Esquece que futebol é esporte. Esquece que os jogadores são seres humanos. Os jogadores, uns baguais sem muita estrutura psicológica, acabam amarelando, sob tamanha pressão. Amarelaram em 98, amarelaram agora. Às vezes ganham a despeito disso, quando não são francos favoritos e têm uma trégua do cagaço, e/ou a tabela ajuda, botando a gente contra Turquia, China, Bélgica, etc, até a semifinal. Quando perdem, todo mundo cai de pau, também de maneira desproporcional.
2. Deve haver vários esquemas de favorecimento na escalação da seleção. Isso explicaria a longevidade do binômio Parreira/Zagalo e de outro, Cafu/Roberto Carlos. E a escalação da maior parte do time. Tem a história do dinheiro do Pita, empresário do Ronaldo, encontrado na conta do Parreira. Tem o fato do João Havelange ter sido o cara que inventou a rota futebolístico-comercial entre Brasil e Europa, quando moldou o futebol e a Copa na forma de um negócio bilionário. O cara botou o Ricardo Teixeira, seu genro, na CBF, enquanto tratou de comandar a FIFA e fez do Blatt seu sucessor. O Ricardo Teixeira a gente conhece. Enfim, ficam armando condições de vender nossos talentos para os times endinheirados dos países endinheirados. Depois, têm que sustentar a fama desses jogadores, garantindo-lhes os holofotes da seleção. Isso sem contar as pressões dos patrocinadores, tanto da CBF quanto dos jogadores, individualmente.
Pois bem, para tudo isso funcionar, tem de haver a conivência da comissão técnica.
Quando eu era criança, a primeira copa a que eu assisti foi a de 1974, e achei que havíamos enterrado o Zagallo; eu vi até o caixão dele, no protesto que houve na avenida principal, depois da atuação vexaminosa da seleção. E o cara reaparece como o "velho Lobo"! Vá se foder! O Galvão deve levar um cachezinho, também. E o Parreira, que beleza, preparador físico, técnico de Gana, depois de uma meia-dúzia de times, acaba tarimbado para ser o cara. Ninguém estranhou?
Aí, os caras que estão na panela, tipo o Roberto Carlos, claro que são jogadores talentosos, mas também são produtos que têm de ser explorados. E devem para todos que os colocaram no esquema, empresários, CBF, patrocinadores, clubes, comissão técnica...
Todos desejam longevidade ao esquema. Por isso, morrem de medo de sair da panela. A atitude de Roberto Carlos, principalmente, sempre foi essa: de mostrar a soberba de titular absoluto. Quando ele chacoalhava o pezinho, deitado na grama, no banco do jogo contra o Japão, estava querendo dizer isso: "daqui não saio, daqui ninguém me tira! Sou o fodão, no jogo que vem esses moleques saem e eu volto pro meu trono. Ninguém vai me mandar de volta para Garça", Araras, ou seja lá de onde ele veio.
Saturday, July 08, 2006
Som e fúria... significando nada!
Outro título seria: muito barulho por nada.
Eu não consigo ler Shakespeare. Cada porra de monólogo me deixa meditativo demais pra seguir em frente. "Ser ou não ser"... "a vida é um espetáculo cheio de som e fúria, significando nada"... umas coisas muito basais, muito definitivas, muito sem saída.
Quem lê o cara e não se aflige, não leu. Eu não leio, e me aflijo.
Na verdade, eu li muito menos do que as pessoas em geral julgam que li. Logo aprendi que as pessoas não lêem, e que vale mais uma citação falsa com convicção do que a honestidade ignorante. Minto mais que menor em porta de boate. Invento dados, citando a fonte, que em geral é um veículo que existe. Mas já cheguei a inventar um certo Journal of Psychedelic Drugs. Faço misérias com o que leio em orelhas de livros.
Já fui mais paranóico. Imaginava que um dia uma polícia intelectual qualquer bateria à minha porta, sabatinar-me-ia a respeito de Nietzsch, e eu sairia algemado de casa, direto para algum calabouço irrastreável. Inescapável, tipo "O Processo", de Kafka, que eu nunca li. Sentiu a mesóclise, lá atrás? É culpa, não é coisa de viado, não se preocupe.
Mas cuidado ao sentir a mesóclise lá atrás, a vítima pode ser você.
Bem, esse vai ser o Blog. Desculpem qualquer coisa.
Outro título seria: muito barulho por nada.
Eu não consigo ler Shakespeare. Cada porra de monólogo me deixa meditativo demais pra seguir em frente. "Ser ou não ser"... "a vida é um espetáculo cheio de som e fúria, significando nada"... umas coisas muito basais, muito definitivas, muito sem saída.
Quem lê o cara e não se aflige, não leu. Eu não leio, e me aflijo.
Na verdade, eu li muito menos do que as pessoas em geral julgam que li. Logo aprendi que as pessoas não lêem, e que vale mais uma citação falsa com convicção do que a honestidade ignorante. Minto mais que menor em porta de boate. Invento dados, citando a fonte, que em geral é um veículo que existe. Mas já cheguei a inventar um certo Journal of Psychedelic Drugs. Faço misérias com o que leio em orelhas de livros.
Já fui mais paranóico. Imaginava que um dia uma polícia intelectual qualquer bateria à minha porta, sabatinar-me-ia a respeito de Nietzsch, e eu sairia algemado de casa, direto para algum calabouço irrastreável. Inescapável, tipo "O Processo", de Kafka, que eu nunca li. Sentiu a mesóclise, lá atrás? É culpa, não é coisa de viado, não se preocupe.
Mas cuidado ao sentir a mesóclise lá atrás, a vítima pode ser você.
Bem, esse vai ser o Blog. Desculpem qualquer coisa.