Os Prazeres e os Riscos
Faz pouco mais de um mês que o Alê morreu. Era o namorado da Helô, mais do que amigo meu, mas mesmo assim sua morte foi chocante. Daquelas de dar frio na barriga, principalmente porque todos que me conhecem viraram-se na minha direção pra dizer, unanimemente: "tá vendo, Dimi???!!!!"
Meses atrás, Alê e Helô foram jantar em casa, quer dizer, pizza do Braz e muito vinho. Ele me contou sobre o avião que ele estava comprando em forma de kit, que iria ser montado em Monte Alto e que viria a cair no vôo inaugural, causando sua morte.
A Patrícia já nem queria que eu conversasse sobre esses assuntos com ele. Ela provavelmente acha que eu seja potencialmente um suicida acidental. De fato, sou piloto de aviões pequenos e tenho uma certa intimidade com esse tipo de aventura, o que pode parecer loucura para muita gente que tem medo de avião. Já pilotei máquinas de pau e trapo, como a gente chamava, aviões que não têm sequer sistema elétrico, a partida é na mão do mecânico, que grita "contato!" e gira a hélice, como nos filmes antigos. Esses aviões, Paulistinhas e Pipers, não tinham fuselagem de metal, ou de fibra, ou de qualquer material rígido: eram feitos de tela impermeabilizada, montada sobre uma estrutura de tubos metálicos. Nem assoalho tinha, a gente tinha que pisar nesses tubos para não furar o avião. Não tinha rádio, nem luz, nem nada. A impermeabilização da tela era feita com Dope, uma substância muito inflamável. Se o avião pegasse fogo, já era. Às vezes, a gente tirava a porta para voar com o ventão entrando, o céu invadindo a cabine violentamente.
Quando eu fazia o curso do brevê, aos 15 anos de idade, a gente tinha aulas teóricas aos sábados, no aeroclube de Londrina. Num sábado daqueles, um dos paulistinhas do aeroclube caiu durante o pouso. O piloto era um tal de Custódio, se não me engano, que havia acabado de tirar o brevê, e estava voando solo. Saímos todos correndo da sala de aula, ante a notícia. No horizonte, na cabeceira 30, via-se uma coluna de fumaça preta subindo muito densa e rápida, e ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Os bombeiros chegaram rapidamente, mas não puderam fazer muita coisa. Os instrutores tentavam impedir-nos de ir até o local do acidente, mas quem conseguiu correr os 5 km da pista e chegar até a cabeceira oposta disse que não sobrara muita coisa para ser vista, a explosão do tanque de gasolina fez inflamar-se o dope da tela e o avião rapidamente sumiu nas chamas. Diziam que o corpo do piloto ficou reduzido a um objeto carbonizado de aproximadamente meio metro. Lembro que esse encolhimento impressionou-me muito, na época, mais pelo inusitado do fenômeno do que pelo medo da morte. Porque: pensa que alguêm considerou desistir de voar? Isso nem passou pela minha cabeça...
O Alê explicou-me que seu avião era um projeto muito bom, mostrou-me na internet os desenhos, algumas fotos de modelos prontos que realmente pareciam muito melhores do que os meus paulistinhas de pau e trapo. Gostei. Achei seguro, sob a reprovação de Patrícia e Helô.
Alguns meses depois, numa quinta-feira, Helô ligou de Barretos comunicando que Alê havia morrido. Que havia ido escondido ao hangar em Monte Alto, onde o avião estava sendo montado já com algum atraso; essas coisas nunca acontecem no prazo. Os mecânicos que iriam testar e ajustar o motor ainda nem haviam chegado de Goiânia para finalizar a montagem. Mesmo assim, Alê insistiu em voar com o avião ainda incompleto. No quarta, queria decolar sem pára-brisa! Não conseguiu convencer os mecânicos. Na quinta, exasperado com o fim de semana que se esgotava, ludibriou a todos e decolou, sem que os tais mecânicos de Goiânia tivessem tido a chance de terminar os ajustes do motor. Minutos depois, a polícia recebeu um telefonema de um sitiante, relatando a queda de um avião em sua propriedade.
O funeral foi muito triste, cheio de gente inconformada com a gratuidade dessa morte de um cara de vinte e poucos anos anos. Helô teve de lidar com os aspectos burocráticos e absurdos, como reconhecer o cadáver no IML de Monte Alto, providenciar o traslado do corpo, dar depoimentos à polícia, ir buscar os documentos do namorado no hangar. Chegou ao velório já como viúva experiente, íntima do sofrimento, repleta da perda, desenvolta na tristeza sua e dos familiares e dos amigos...
Chorou muito. Quando estávamos no crematório, ela chegou até mim e perguntou se eu tinha cds no carro, pois as músicas que havia no repertório para a cerimônia eram terríveis. (As pessoas acham que, por eu ser músico profissional, devo sempre ter uma solução para dilemas musiciais ou sonoros. Algo como um médico na platéia.) Meus cds do carro não prestavam para a cerimônia, a menos que Deep Purple fosse uma opção, mas concordamos que não ficaria bem. Helô juntou umas canções de uns discos da prima, e contou uma história linda através dos versos dessas músicas. Não vou descrever aqui o conteúdo, também porque não me lembraria com exatidão. Mas, quando postas naquele contexto do crematório, as canções falavam de um amor jovem, de uma vida arriscada, de saudade, de lembrança... ditos de uma forma que soou muito pessoal e sincera. As pessoas começaram a entender, e a falar. E a sorrir chorando. Foi uma homenagem belíssima, que acabou por reconfortar a todos que estavam participando daquele momento terrível e constrangedor.
Na saída, pessoas cumprimentavam-me pela escolha das músicas, achando que fosse obra minha. Eu explicava que não.
Faz pouco mais de um mês que o Alê morreu. Era o namorado da Helô, mais do que amigo meu, mas mesmo assim sua morte foi chocante. Daquelas de dar frio na barriga, principalmente porque todos que me conhecem viraram-se na minha direção pra dizer, unanimemente: "tá vendo, Dimi???!!!!"
Meses atrás, Alê e Helô foram jantar em casa, quer dizer, pizza do Braz e muito vinho. Ele me contou sobre o avião que ele estava comprando em forma de kit, que iria ser montado em Monte Alto e que viria a cair no vôo inaugural, causando sua morte.
A Patrícia já nem queria que eu conversasse sobre esses assuntos com ele. Ela provavelmente acha que eu seja potencialmente um suicida acidental. De fato, sou piloto de aviões pequenos e tenho uma certa intimidade com esse tipo de aventura, o que pode parecer loucura para muita gente que tem medo de avião. Já pilotei máquinas de pau e trapo, como a gente chamava, aviões que não têm sequer sistema elétrico, a partida é na mão do mecânico, que grita "contato!" e gira a hélice, como nos filmes antigos. Esses aviões, Paulistinhas e Pipers, não tinham fuselagem de metal, ou de fibra, ou de qualquer material rígido: eram feitos de tela impermeabilizada, montada sobre uma estrutura de tubos metálicos. Nem assoalho tinha, a gente tinha que pisar nesses tubos para não furar o avião. Não tinha rádio, nem luz, nem nada. A impermeabilização da tela era feita com Dope, uma substância muito inflamável. Se o avião pegasse fogo, já era. Às vezes, a gente tirava a porta para voar com o ventão entrando, o céu invadindo a cabine violentamente.
Quando eu fazia o curso do brevê, aos 15 anos de idade, a gente tinha aulas teóricas aos sábados, no aeroclube de Londrina. Num sábado daqueles, um dos paulistinhas do aeroclube caiu durante o pouso. O piloto era um tal de Custódio, se não me engano, que havia acabado de tirar o brevê, e estava voando solo. Saímos todos correndo da sala de aula, ante a notícia. No horizonte, na cabeceira 30, via-se uma coluna de fumaça preta subindo muito densa e rápida, e ninguém parecia acreditar no que estava acontecendo. Os bombeiros chegaram rapidamente, mas não puderam fazer muita coisa. Os instrutores tentavam impedir-nos de ir até o local do acidente, mas quem conseguiu correr os 5 km da pista e chegar até a cabeceira oposta disse que não sobrara muita coisa para ser vista, a explosão do tanque de gasolina fez inflamar-se o dope da tela e o avião rapidamente sumiu nas chamas. Diziam que o corpo do piloto ficou reduzido a um objeto carbonizado de aproximadamente meio metro. Lembro que esse encolhimento impressionou-me muito, na época, mais pelo inusitado do fenômeno do que pelo medo da morte. Porque: pensa que alguêm considerou desistir de voar? Isso nem passou pela minha cabeça...
O Alê explicou-me que seu avião era um projeto muito bom, mostrou-me na internet os desenhos, algumas fotos de modelos prontos que realmente pareciam muito melhores do que os meus paulistinhas de pau e trapo. Gostei. Achei seguro, sob a reprovação de Patrícia e Helô.
Alguns meses depois, numa quinta-feira, Helô ligou de Barretos comunicando que Alê havia morrido. Que havia ido escondido ao hangar em Monte Alto, onde o avião estava sendo montado já com algum atraso; essas coisas nunca acontecem no prazo. Os mecânicos que iriam testar e ajustar o motor ainda nem haviam chegado de Goiânia para finalizar a montagem. Mesmo assim, Alê insistiu em voar com o avião ainda incompleto. No quarta, queria decolar sem pára-brisa! Não conseguiu convencer os mecânicos. Na quinta, exasperado com o fim de semana que se esgotava, ludibriou a todos e decolou, sem que os tais mecânicos de Goiânia tivessem tido a chance de terminar os ajustes do motor. Minutos depois, a polícia recebeu um telefonema de um sitiante, relatando a queda de um avião em sua propriedade.
O funeral foi muito triste, cheio de gente inconformada com a gratuidade dessa morte de um cara de vinte e poucos anos anos. Helô teve de lidar com os aspectos burocráticos e absurdos, como reconhecer o cadáver no IML de Monte Alto, providenciar o traslado do corpo, dar depoimentos à polícia, ir buscar os documentos do namorado no hangar. Chegou ao velório já como viúva experiente, íntima do sofrimento, repleta da perda, desenvolta na tristeza sua e dos familiares e dos amigos...
Chorou muito. Quando estávamos no crematório, ela chegou até mim e perguntou se eu tinha cds no carro, pois as músicas que havia no repertório para a cerimônia eram terríveis. (As pessoas acham que, por eu ser músico profissional, devo sempre ter uma solução para dilemas musiciais ou sonoros. Algo como um médico na platéia.) Meus cds do carro não prestavam para a cerimônia, a menos que Deep Purple fosse uma opção, mas concordamos que não ficaria bem. Helô juntou umas canções de uns discos da prima, e contou uma história linda através dos versos dessas músicas. Não vou descrever aqui o conteúdo, também porque não me lembraria com exatidão. Mas, quando postas naquele contexto do crematório, as canções falavam de um amor jovem, de uma vida arriscada, de saudade, de lembrança... ditos de uma forma que soou muito pessoal e sincera. As pessoas começaram a entender, e a falar. E a sorrir chorando. Foi uma homenagem belíssima, que acabou por reconfortar a todos que estavam participando daquele momento terrível e constrangedor.
Na saída, pessoas cumprimentavam-me pela escolha das músicas, achando que fosse obra minha. Eu explicava que não.
5 Comments:
Já vivi histórias como essa,de perdas irreparáveis, como todas, na verdade.Mas parece que o ALê era um cara que sabia que para viver de fato a gente tem que correr riscos, tem q se "jogar" e deixar a vida nos surpreender, nos tirar do lugar, nos levar pra frente.Se é pra viver, que seja intensamente, que seja com tesão. Ele morreu fazendo algo que lhe dava prazer e isso per si significa muito,tudo.E como vc diz sobre o quando,é, as coisas só acontecem quando têm de acontecer, nem antes, nem depois. Que tenha seu último vôo, Alê, tenha te levado aos sonhos mais lindos.
Olá!!
Eu nem sei como vim parar aqui, mas fiquei muito tocada com a história do seu amigo.
Mesmo pq eu vivo cercada de pessoas que curtem um perigo inconsequente.
Enfim ...
Tenho um pedido ... gostaria de copiar uma figura do seu blog para realizar uma tatuagem. Posso??
Mil beijos!!!
Pois é... Essa coisa de não saber até onde podemos ir por nossos sonhos e até que ponto correr riscos vale a pena é uma eterna crise... rsss
A perda de uma pessoa querida sempre é um marco na vida da gente.
Desde que fiquei orfã, aprendi muito sobre a morte. Quando chega a nossa hora não tem jeito.
E você, continue levando a vida leve (é o seu charme :P) mas não esqueça que não é mais sozinho, em casa tem duas florzinhas pra vocês cultivar.
Dimi,
ainda estou com os olhos cheios de lágrimas...Agradeço muito pela sua sensibilidade em descrever a tragédia sob o aspecto de um aventureiro, sob o prisma de quem AMA a vida mas às vezes menospreza seus riscos!!! O Alê nos ensinou muito, mas acho que ele não conheceu a saudade- se soubesse o quanto dói não teria voado, tenho certeza!!! T CUIDA, viu??!! As duas loiras da sua vida agradecem!!! rsrsrsr
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