Sunday, July 30, 2006

Insetos


(ilustração: De Chirico, "Melancholy and Mistery of a Street", 1913.)

Insetos


Enquanto mirava o vaso com o seu jato incerto, o formiga tentava imaginar nua a louva-a-deus que o esperava no balcão. Reflexivo, dava-se conta de que sempre gostara de mulheres altas, mas acabara casando com uma formiguinha brevilínea. Tanajura de boa bunda, mas pequena e acanhada, só se via brilho nos olhos se fosse para falar de doença. Então, punha-se a descrever casos clínicos da família, da vizinhança e das celebridades da TV, tecia impressões sobre novas modalidades terapêuticas e orientava quem precisasse ou não dos seus conselhos paramédicos.
Abriu a porta do banheiro e inspirou aliviado a atmosfera sórdida do bar. Cambaleou em direção à deusa, que brincava com o gelo do seu uísque, introspectiva, os cotovelos apoiados no balcão. Isso fazia das suas costas, imensas e brancas, intermináveis, expostas pelo decote do vestido de veludo verde escuro. Foi se aproximando com um sorriso meio demente, julgando-se superior aos homens de todo o mundo, que não tinham a chance de estar ali com aquela fêmea cinematográfica. Seu estado de embriaguez impediu que formulasse com clareza a questão, mas um esboço de raciocínio atravessou sua mente otimista: por que ele?
A louva-a-deus recebeu-o com um sorriso de olhos verdes apertados:
- Pensei que tivesse fugido pela porta dos fundos...
- Demorei, é? O banheiro estava mais concorrido que velório de político.

Ela riu. Era deslumbrante quando ria. Ele sorriu de volta, aliviado pelo sucesso da piada.
- Mas então você é amigo da cigarra?
- Ah, sim. Fomos mais que amigos, eu poderia dizer – e já havia dito, tentando impressionar.
- E você não a via há muito tempo...
- Claro, desde que ela se tornou uma pop-star, meu acesso ficou um pouco restrito. Como a fama muda as pessoas, não? Um pouco de sucesso, sei lá, não quinze, mas uns vinte minutos de fama já são suficientes para uma pessoa mudar de círculos, rodeada de acessores e porta-vozes. E gente que gosta de viver das migalhas da fama alheia não falta, por aí – disse, despeitado.

E contou como havia encontrado com a cigarra por acaso, naquela tarde. Ele passava em frente à porta de uma loja elegante quando a estrela saía esbaforida, envolta em sacolas de griffe e gente que orbitava seu sucesso. Trombaram, algumas sacolas caíram, e os seguranças já tentavam afastá-lo quando reconheceram um ao outro. Constrangida e surpresa, a cigarra acabou convidando-o para um almoço rápido, ali mesmo no shopping. Cada um com sua bandeja de fast-food, foram sentar-se numa mesa mais afastada da praça de alimentação, com os seguranças a uma distância respeitosa. Alguns fãs a reconheciam de longe.
- Parece incrível mas hoje em dia é quase impossível vir fazer compras como qualquer pessoa. Há anos eu não vinha aqui!
- Tudo tem seu preço – disse o formiga, desembrulhando rancorosamente seu hambúrguer. A cigarra ficou em silêncio, limitando-se a dar uma garfada no seu salmão com salada.
- Quanto tempo, hein? – falou a estrela, finalmente, tentando direcionar a refeição para a trivialidade.
- Para mim parece que foi ontem que nos vimos pela última vez. É claro que você estava menos maquiada. E usava menos ouro.
- Você casou, não é? – tentou a cigarra.

Agora foi a vez do formiga calar. Depois de alguma mastigação, teorizou:
- Acho que consegui definir o que a gente reconhece visualmente como uma “perua”. São mulheres de meia idade de biótipo mediterrâneo, mas o cabelo pintado de louro, e o rosto emoldurado por colares e brincos muito dourados. Umas morenaças em molduras barrocas, é isso, tentando negar a estirpe. Uma coisa meio etnocêntrica...
- Olha, se você vai continuar me provocando...
- Calma, calma, não estou falando de você, não, sua perseguida. Se bem que seus brincos realmente me chamaram a atenção. Eu prefira seu estilo de anos atrás, quando você ainda não se dava a esse tipo de exagero.

A cigarra, distante, esboçou um sorriso para seu salmão grelhado. Há poucos anos ela não teria a opção de usar ou não brincos como aqueles. Não usava nada, pois mal tinha o que comer. Hoje talvez estivesse perdendo a crítica, e realmente tinha que tomar cuidado com a aparência, afinal ela era uma figura pública e grande parte do seu sucesso, ela sabia, era relacionado com a impressão visual que ela transmitia ao público. Ser artista é estar exposta, pensou, não adiantam utopias de privacidade. Sua maior obra era sua vida, e tudo o que o que fazia, 24 horas ao dia, como essas pessoas que hoje em dia estão transmitindo via Internet o seu tedioso cotidiano, agora ela entendia a metáfora. Será que deveria trocar de consultora de moda? Ela não havia gostado nada das roupas escolhidas pela dita cuja. Numa outra loja havia uns modelos muito menos convencionais que...
- Você ainda se lembra da cigarra que você era há alguns anos atrás? – disse o formiga, trazendo-a de volta àquela mesa.
- Claro que sim. Você sabe que sim. Escuta, acho que já está na hora de você entender o que aconteceu entre a gente.
- E o que teria acontecido entre nós, na sua versão?

Ela tentava reconstruir o caminho que a levara àquela situação. Por que ela tinha de estar ali, àquela hora, tendo de se explicar?
- Acho que aqui não é o lugar apropriado para termos esse tipo de conversa – disse, claustrofóbica.
- Muito conveniente para você...

Nesse ponto, aproximou-se da mesa um dos inúmeros acessores da cigarra:
- Ci, temos que ir, a entrevista...
- Claro, claro já estamos nos despedindo, pode ir chamando o carro.

O formiga já estava prestes a fazer uma cena, quando a cigarra tirou um cartão da bolsa e entregou a ele. Que ligasse para ela. Que marcassem outro encontro, a sós, num lugar mais tranqüilo.
- Espero você ligar.

E sumiu com seu séquito, rumo aos estacionamentos, suas antenas oscilando ligeiramente acima das outras, mortais.
* * *
Foi acordado na madrugada pela dor-de-cabeça . Não reconheceu a louva-a-deus que dormia a seu lado. Chegou à cozinha por tentativa e erro, engoliu muita água. Não teve condição de muito raciocínio, voltou a dormir ao lado da ressonante louva-a-deus, de quem agora ele tinha uma vaga lembrança, e sonhou com uma tanajura tímida que lhe assistia a trepar com a cigarra. Não chegaria a se lembrar desses sonhos, ao acordar.
* * *
Acordou tarde, já bastante atrasado. Estava só. Encontrou um bilhete no espelho:
“Obrigada pela noite maravilhosa. Beijos. L.
P.S.: Jogue a chave por debaixo da porta. E ligue-me à noite.”

* * *
Bateu o ponto no formigueiro com um atestado médico falso. Trabalhou feito uma formiga, carregando seis vezes o seu próprio peso.
* * *
Sentou na cama e acendeu um cigarro. Não conseguia dormir. Olhou para o corpo inerte da tanajura, e lembrou-se das longas pernas da louva-a-deus. Soltou a fumaça.
Virada para a parede, de olhos abertos, a tanajura fingia dormir; da mesma maneira, fingira acreditar na história do seqüestro pelo O.V.N.I., e fingia não se importar que fumasse no quarto.

* * *
A louva-a-deus sempre vinha por cima, fazendo caras de modelo. O formiga olhava admirado a beleza transtornada da ortóptera, cavalgando antes compassada, e acelerando, crescendo sobre a pelve passiva do formiga, e gemendo, agora fodendo furiosamente, seu rosto tomado pelos espasmos, e seus olhos iam ficando terríveis e malignos, até o gozo assustador, que parecia um frenesi alimentar. Ia para o banheiro imediatamente.
O formiga ficava largado na cama, orgulhoso por nada.

* * *
Um dia, a louva-a-deus disse:
- Você merece ir à forra pelo que a cigarra fez com você.

O coitado sustentara a cantora por longos anos, durante rigorosos invernos, e mesmo através de alguns verões bastante amenos. Foram amantes assimétricos: ela raramente chegava a ter algum prazer, enquanto que ele se desmanchava rapidamente. Ele a presenteava com insistentes compensações, e fazia esforço em não perceber a fragilidade daquela ligação, com toda a sua tenacidade de formiga. Quando veio sua chance, a cigarra a agarrou: um caso com um produtor famoso, um disco numa gravadora grande, uma música na novela. Uma ponta em outra novela. Dois casamentos: um com o tal produtor; outro com um ator da segunda novela. E nunca mais viu o formiga, até aquele encontro no shopping.

A louva-a-deus encarregou-se de transmutar a autocomiseração do formiga em ódio pela cigarra. Ela propôs o seguinte: ele marcaria com a cigarra o encontro prometido no shopping. Iriam a algum lugar ermo, sem os seguranças; ela iria com alguns amigos e os interceptaria. Seria um seqüestro rápido, com um resgate relativamente baixo. Seria sua vingança.

O formiga resolveu afastar-se da louva-a-deus. Voltou a chegar cedo em casa. Assustava a tanajura com sua nova agressividade sexual, a que ela tentava corresponder, mas acabava tendo cãibras. Isso durou duas semanas.
Numa terça-feira, faltou ao trabalho e foi ao apartamento da amante, que o recebeu vestindo uma camisola longa transparente. Fornicaram durante todo o dia. À noite, ele ligou para a cigarra, marcando o encontro.
* * *
Tudo correu como o planejado: os insetos do bando da louva-a-deus interceptaram o BMW da cigarra próximo à marginal. Não houve resistência, salvo uma ligeira simulação por parte do formiga.
No cativeiro, a cigarra permanecia amarrada e vendada.
- Você acha isso mesmo necessário? – perguntava ao gafanhoto, líder do bando de insetos criminosos.

O bandido nunca respondia às suas perguntas. E muito menos sorria. O modo como ele abraçava a louva-a-deus incomodava o formiga.
À noite, o formiga aproveitou um cochilo do grilo, o sentinela do turno, e entrou no quarto da cigarra. As luzes estavam acesas, mas a refém estava vendada e amarrada. E nua. Dormia encolhida sobre um colchão imundo. Ele ficou chocado ao vê-la naquela condição. Arrependeu-se. Quis desamarrá-la, que saíssem correndo dali. Mas já fora longe demais, já não podia voltar atrás. Aproximou-se. Observou o corpo nu da cigarra. Lembrou-se de como era bom perder-se entre aquelas coxas. Chegou quase a tocar sua bunda, sua mão a menos de um centímetro da pele nua da cigarra. Repentinamente, ela acordou:
- Tem alguém aí? Quem está aí?

Ele deu um salto instintivo para trás, assustado. Ela suplicou:
- Por favor, não me machuque...

Ele se manteve quieto, os olhos muito arregalados, imaginando se ela sabia que as luzes estavam acesas. Notou que a cigarra tremia. Acalmou-se. Decidiu ficar no quarto.
- O que você vai fazer comigo? – perguntou a indefesa, com voz incerta.

Ele não respondeu. Começou a ter sentimentos ambíguos. É claro que era hediondo, mas ele sentia algum prazer em vê-la tão indefesa, tão à sua mercê. Aproximou-se do colchão. Tocou o braço da cigarra, que se encolheu toda, mas não gritou. Alisou suas costas, quase sem acreditar no que suas mãos faziam, quase involuntariamente, a cigarra tremia muito, mas não emitia mais que um gemido muito tímido; suas mãos passaram pelas nádegas, e seguiram pelas coxas, a cigarra tentou afastar-se, mas não conseguiu, toda amarrada, ficou arfando, e ele possuía seu corpo com as mãos, um tanto horrorizado com o que fazia, pensando em como ela parecia frágil, agora, a traidora, e começou a delirar de poder, ódio e tesão, manipulando aquele corpo, suas mãos indo e vindo sobre a pele indefesa, sentindo cada fibra dos seus músculos macios, roçando seus pelos púbicos, agora em direção ao sexo da cigarra, ao sexo da puta, sua puta, não me quis, não foi?, agora veja o que eu faço com você, ele pensava, e ao mesmo tempo pensava na coitada e no que suas mãos horríveis faziam, mas ela merece, é uma puta ingrata, que trepou com todo mundo pra subir na vida, agora está aí, nem sabe que a luz está acesa e eu estou vendo o seu corpo todo tremendo, agora você vai ver, e a cigarra começou a chorar mais alto e ele tentou tapar sua boca mas por que caralho não amordaçaram essa vaca vai acabar acordando todo mundo...
- ...cala a boca, sua vagabunda!

- Formiga? É você?!

Ela reconheceu sua voz. E começou a gritar:
- É você? É você? Responde!

Os criminosos não demoraram mais do que alguns segundos. Já chegaram espancando o formiga, que não conseguia esboçar reação, em estado de choque, nem tanto pelo que fizera, ou pelo que iria acontecer consigo, mas sim pelo tom desesperado da voz da cigarra ao reconhecer sua voz.

A cigarra foi morta, e a seu corpo foi dado sumiço. As negociações sobre o resgate tornaram-se difíceis, com a falta de provas de que a refém ainda estivesse viva.
No seu terceiro dia de clausura no porão, o formiga recebeu a visita da louva-a-deus. De maneira surpreendente, ela aparentava serenidade. Desceu ao calabouço e começou a limpar os ferimentos do formiga. Ele consentia, silencioso. Então falou:
- Você se aproximou de mim somente por esse motivo.

Ela não respondeu. Continuou a limpar os ferimentos. Ele continuou falando. De como ela o traíra. De como ele tinha confiado nela. De como ela o tinha obrigado a cometer barbaridades, etc., etc...
Mas a louva-a-deus já havia terminado sua tarefa. Agora, despia-se. O formiga não entendia. Ela começou a acariciar o corpo do outro. Perplexo, ele começava a ter a mesma sensação que tivera noite em que encontrara a louva-a-deus pela primeira vez; dessa vez chegou a perguntar, excitado:
- Por que eu? E por que agora?

Ela já estava sobre ele, e movia os quadris. Sorriu levemente, com seus olhos verdes fendidos:
- Você deveria conhecer melhor os hábitos alimentares dos insetos com quem se envolve...

Naquele instante, deu-se conta do que aconteceria. Procurou ao redor e não encontrou ninguém a quem pedir socorro.
No momento seguinte, a louva-a-deus deu um grito aterrorizante e precipitou-se vorazmente sobre a cabeça do formiga.

5 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Hummm... Permite que eu reproduza uma frase no meu blog?
Gostei!

5:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

Não permita não. rs
Você é perfeito!
Uma Mont Blanc nas mãos de Fernando Pessoa! rs

7:40 PM  
Anonymous Anonymous said...

Que imaginação, hein!
Foi baseada em fatos reais? hahahahaha

beijo

1:37 PM  
Anonymous Anonymous said...

Esse é "O CONTO".
Sou apaixonada por ele, cada vez que leio leva a uma reflexão diferente.
Bláh! os contos são pra isso mesmo :P

10:05 AM  
Anonymous Anonymous said...

This comment has been removed by a blog administrator.

7:46 PM  

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