Wednesday, June 18, 2025

A Quiromante



 Ele abriu o gabinete do banheiro batendo as portas com raiva, afastou ofegante o recipiente gigante de Listerine e retirou de trás dele um embrulho de flanela.

Sentou-se na sua poltrona de couro preferida, depositou o embrulho na mesinha de centro e desacelerou um pouco os pensamentos. A tarde de domingo se transformava de laranja a violeta. Ele sentia uma melancolia típica desses finais de domingo, mesmo sendo daltônico e não conseguindo apreciar totalmente essas transições cromáticas; ou, talvez, exatamente por isso. De qualquer modo, cores não existem no mundo, ele sabia. São apenas reações cerebrais a diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas. Quem é que garante que o meu vermelho não é o mais verdadeiro? Quem é que garante que cada ser humano não enxerga seu próprio vermelho que é diferente de todos os outros?


Cambaleou com sua protofilosofia bêbada até a cozinha, retirou a garrafa do armário e serviu outra dose de uísque no copo de cristal lapidado. Espatifou a forma de gelo na pia e muniu seu copo de algumas pedras.


Voltou a sentar-se na poltrona e encarou o pacote em cima da mesinha com a pouca luz que ainda entrava pela janela. Sentia seu pulso batendo dentro do crânio e dentro do peito. Tomou mais um gole do uísque e ligou a TV. Seus olhos se alternavam entre o apresentador dominical e o embrulho. As ondas de fúria e autopiedade iam e viam, intercaladas com pensamentos randômicos sobre as imagens das dançarinas que sorriam para a câmera. 


A luz azulada da TV agora se refletia no metal escuro da pistola. Ele usou a flanela para polir a arma, até que não restasse um sinal de gordura ou impressão digital, não por qualquer precaução, somente por capricho. Esta atividade metódica distraiu sua mente e ele quase esqueceu a sua raiva. 


Começou a lembrar dos momentos bons: como no dia do seu aniversário, em que ela entrou no quarto caminhando nas pontas dos pés. Ele fingiu que dormia para não estragar a surpresa. Ela abriu o armário de sapatos e retirou o pacote de presente. Abriu uma fresta na cortina projetando um feixe de luz matinal exatamente sobre o rosto que fingia adormecido. Depois ela fez todos os carinhos que faziam com que ele tivesse a ilusão momentânea de que a vida pudesse ser boa. Talvez. Se ele pudesse realmente acreditar que ela fosse sua. Somente sua. 


Ele nunca havia sido uma pessoa ciumenta, achava. Ninguém pode pertencer a ninguém; quando um não quer, não há por que continuar. Tudo é uma questão de negociar limites e expectativas. Com ela era diferente, no entanto. A racionalidade o abandonava em cada esquina desse relacionamento que já fazia mais de um ano, agora ele se dava conta que seu aniversário estava próximo novamente.


Ela era garota de programa. Simples assim. Desde a separação, ele decidira nunca mais se casar ou namorar. Acolheu a opinião vulgar dos seus amigos que diziam serem mais econômicos os relacionamentos remunerados. Ele a viu num anúncio de internet: Acompanhantes de Luxo em São Paulo. Uma sequência de mulheres e meninas de todos os tipos e feições, em roupas íntimas ou nuas, em posições de provocantes a ginecológicas. Seu olhar prendeu-se espontaneamente naquela foto da menina loira, magra, que não exibia os peitões e bundões que as outras candidatas ostentavam, mas tinha um meio sorriso tranquilo e confiante, um olhar de quem não deve nada e nem está tentando impressionar a ninguém. 

O encontro foi numa kitchenette, doravante chamada estúdio, em Moema, o “local próprio” antecipado no site. Ela o recebeu com um sorriso suave e um beijo no rosto. Pediu que ficasse à vontade enquanto ela iria tomar um banho e trocar a roupa de ginástica (ele se adiantara um pouco no horário, é bem verdade). O quarto tinha um cheiro de morango esfumaçado que vinha do incenso que ela deixara queimando na mesa de artesanato em madeira. A luz do abajur era amarelada e uma música espanhola sutil vinha de um pequeno “boom-box” em cima da cômoda. Ou seria francesa? Depois de entrar no quarto vestindo um quimono de seda vermelha, ela explicaria ser uma banda de Barcelona, que cantava em catalão. Que ela conhecera numa viagem, mochilando pela Europa. 


Ele nunca havia saído do país. Quer dizer, uma vez fora até Foz do Iguaçu com os pais, e compraram porcarias na Ciudad Del Est, que na época chamava-se Puerto Stroessner. Mas só. Sua vida havia sido toda no bairro da Saúde. Morando perto dos seus pais, casando-se com a vizinha de infância também nissei como ele. Quando seu pai faleceu, ele assumiu o negócio da família, uma quitanda na Luiz Góes, quase na esquina com a Domingos de Moraes. Mesmo a separação da sua mulher não foi um trauma. Foi um desinteresse mútuo e crescente de um pelo outro. Quando ela quis mudar-se para perto dos parentes no Paraná, ele não se opôs. Não tinham filhos. 


O que leva uma moça que viaja pela Europa a tornar-se uma prostituta? Ele se indagava. Quando ela deixou cair pelo chão o quimono e o tocou pela primeira vez, ele compreendeu. Ela possuía a destreza calma das pessoas acostumadas a estarem à vontade dentro da própria pele. Naquela noite, ele descobriu que a vida podia boa como ele nunca suspeitara. Ele achava.


A pistola em cima da mesa apontava para ele. A luz dos comerciais na TV fazia-a como que dançar no escuro da sala, acompanhando os jingles. Ele não podia ir em frente com isso, tinha que se acalmar. Ela era o amor da sua vida. E ele já imaginara, um dia, a possibilidade de ser o amor da vida dela. Até acreditou, por um momento, que fosse algo próximo disso. Que pelo menos ela se importasse com ele. Que o respeitasse. Respeito, era o mínimo que ele pedia. Nem isso ele sentia que ela ainda tivesse por ele. Ela não tinha, ele sempre soube disso. Era uma traidora incorrigível, tal qual a ciganinha dissera.


Na semana anterior, haviam chegado as ciganas que vinham a São Paulo toda a primavera. Mulheres e meninas com vestidos compridos, adornos de ouro, lenços na cabeça prendendo os cabelos em geral claros, contrastando com sua pele queimada pelo sol. Viviam de esmolas, vendendo panos de prato, praticando a quiromancia, e também pequenos furtos, suspeitava-se. Enquanto atravessava a feira, uma menina que não devia ter mais de treze anos tomou-o pelo pulso e prometeu-lhe ler a mão sem cobrar nada. Ele tentou esquivar-se, mas ela o olhou fundo nos olhos com os seus próprios, azuis, sérios, que iluminavam seu rosto magro, sujo e moreno. Disse (com um sotaque muito estranho que poderia ser romeno) ver uma mulher mais jovem na vida dele; que ela estava com outro naquele momento, que ia com muitos homens, com todos os que queria; e que ele não deveria esperar nada de bom vindo dela. A pequena cigana largou seu pulso e saiu correndo através multidão da feira. Ele tentou segui-la, mas em vão.


Era óbvio que ela ficava com todos. Era claro que ela não cumpria sua parte do acordo. Como uma mulher daquelas ia se segurar? Se restringir a um só? Como uma Afrodite como ela iria contentar-se com um mortal como ele? Afrodite... O ódio inundou-lhe o estômago de bílis negra novamente. Como ela podia ser tão ingrata? Depois de tudo o que ele fizera por ela?


No terceiro encontro no estúdio de Moema, ele já estava apaixonado. Ela era o primeiro pensamento que lhe ocorria quando acordava e a última visão que lhe habitava a mente antes de adormecer. Tentou ser um homem melhor por sua causa. Começou a exercitar-se. Comprou calças de alfaiataria. Barbeava-se diariamente, agora. Tratava melhor os clientes, que notavam uma mudança no atendimento da quitanda, que na verdade transformara-se num mercado. Reuniu as economias e comprou o imóvel vizinho, que abrigava uma oficina mecânica. Expandiu seu negócio. Depois de um ano, ele fez a proposta: sustentá-la em todas as suas necessidades, tirá-la “dessa vida”. Ela recusou. Estava confortável. Ela tinha planos que não incluíam ser submissa a um homem. Na verdade, ela nunca disse isso: ele imaginou. Mas a imaginação e realidade começaram a misturar-se. O amor tem algo de loucura, acontece mais na mente de quem ama do que entre duas pessoas. Algum tipo de amor, pelo menos. É uma espécie de psicose, uma alucinação na qual se quer acreditar. Como um mantra, a ideia que se faz da pessoa fica sendo repetida na mente, até que se acredite nela. Naquela noite, ele bebeu sozinho pela primeira vez e formulou que o amor é um tipo de loucura. Tentou escrever um poema a respeito, mas dormiu no sofá depois de alguns minutos. Continuou a frequentar o estúdio, tantas vezes por semana quanto ela podia encaixar em sua agenda. Seis meses depois, repetiu a proposta: ela aceitou. Ele nunca soube exatamente o porquê. Ela simplesmente disse que havia mudado de ideia. Não tinha o costume de explicar-se muito. 


Os primeiros meses foram de alegria. Ele a encheu de presentes. Joias. Roupas. Perfumes. Via de regra, ela trocava tudo nas lojas por coisas mais de acordo com seu gosto, mas ele não se ofendia. Importava somente que ela estivesse feliz. Ela parecia contente. Nunca reclamou de nada. Ela tinha uma leveza inerente que a fazia flutuar acima da realidade, fazendo com que ele jamais soubesse o que se passava em sua mente. De início, isso bastava para ambos e o arranjo funcionava sem muitos problemas. Sem nenhum problema que não fosse resolvido. Com o tempo, entretanto, ele foi ficando mais ambicioso. O fato de ela ser tão abstinente o exasperava, às vezes. Tentava interrogá-la, pressioná-la, coagi-la a abrir-se com ele. Mas ela flutuava para longe, simplesmente não engajava em discussões, era refratária a todas as suas insistências. Como resultado, ele nunca soube o que ela realmente pensava da situação que compartilhavam, nem que ideia ela fazia dele.


Ele retirou o magazine de dentro da pistola: quinze tiros. Tomou outro gole de uísque, acariciando com o polegar as pontas das balas encaixadas no pente. Ele podia imaginar o que se passava na cabeça dela. Ela certamente o achava um otário. Um idiota que só servia para sustentá-la. Tentou ligar pela centésima vez: direto na caixa postal. O que mais o irritava eram os pequenos detalhes. Como ela não deixava que ele seguisse sua localização pelo celular. Como ela não deixava seu celular sinalizar se ela estava conectada. Como ela ficava horas incomunicável, supostamente sem bateria. Ou sem sinal. Ou sem o celular. Uma ninfomaníaca aproveitadora, só podia ser. Mas ia ter o que merecia. Hoje ela havia passado dos limites. Começou logo cedo pela manhã. O modo como ela ria ao telefone, no jardim. Ela não viu que ele estava na varanda e podia ouvi-la. Podia quase ouvir, na verdade. Não estava perto o suficiente para decifrar o que falava, mas o modo como ria, e sorria, o jeito mole de falar... tudo parecia muito claro. Não ficou surpreso quando ela disse que precisava sair, mas ficou possesso. Disse que a levaria aonde quisesse ir. Ela tentou dissuadi-lo, mas ele insistiu. Saíram de carro. Compras no shopping, ela disse. Mas o shopping ainda não estava aberto, era domingo, ele disse. Ela não respondeu. Apenas olhou para as unhas. Depois argumentou que, se estivesse indo a pé, como havia planejado, chegaria na hora exata. O trânsito piorou. Ele estava impaciente. Ela disse que precisava caminhar. Simplesmente abriu a porta e saiu do carro. Ele gritou através da janela. Que voltasse. Que não fizesse a louca. Ela continuou caminhando. Ele fez menção de sair do carro e ir atras dela a pé. Uns ciclistas intrusos, vendo a gritaria, se aproximaram. Ele preferiu evitar um escândalo em público. Inibiu-se. Ela seguiu pela calçada, enquanto ele adivinhava aquele ligeiro sorriso em seu rosto, mesmo pelas costas, tinha certeza daquele meio sorriso de quem acha que não deve nada a ninguém. Viu-a dobrar a esquina, na contramão para os carros, engarrafados pela ciclovia instalada para o domingo. Na calçada oposta, ele enxergou a pequena cigana encarando-o de longe, com olhar muito sério, e balançando a cabeça como que em sinal afirmativo. Pedestres passaram e ela sumiu na turba.


Inseriu novamente o pente cheio de munições na pistola. O álcool atingira um novo nível. Agora ele vagava num território plano e liso de autocomiseração. Sentia um vazio confortável dentro do peito, como se nada mais fizesse diferença. Tê-la ou não. Ser ou não ser. Repentinamente, uma onda de pessimismo e desespero veio de dentro das suas vísceras, como um vômito: ele engatilhou a Glock 9mm e enfiou o cano na boca, num movimento rápido. Urrava grotescamente, arfava e oscilava o tronco para frente e para trás, com a pistola pronta a sujar-lhe a poltrona predileta com os fragmentos de seu cérebro. 


Mas não puxou o gatilho. Tirou o cano da boca e chorou. Um choro longo, sem fim, sem propósito, sem objeto, um choro que vinha de um lugar que ele só conhecia nos sonhos, ou quando estava distraído o suficiente para não encontrar nenhum sentido na vida que não fosse ela. Mas ele nunca a teria. Ela seria sempre de todos, e nunca dele, e nunca de ninguém. Naquele exato momento, ela devia estar emprestando seus carinhos a um homem aleatório, a um qualquer, que a possuiria melhor que ele, que a faria fechar os olhos e sorrir suavemente enquanto a possuía. Esse pensamento era-lhe insuportável. Ele se levantou da poltrona, respirando muito rápido, andou de um lado para o outro na sala, hiperventilando, não, não, se não fosse sua, não seria de mais ninguém, não poderia ser, ele tinha de pôr um fim nisso, mas ela era a razão da sua vida, mas então sua vida não tinha razão de ser, ele também se mataria depois, mas ela teria o que merece, teria o castigo que mereceu, ele apontou a pistola para a TV, soltou um grito longo e enfurecido mirando na dançarina que ainda sorria durante os créditos finais do programa dominical...


 Mas percebeu o ruído e a luz de um carro parando em frente à casa. A voz dela, falando coisas curtas e indistintas. A porta do carro batendo, o carro arrancando. Ele escondeu a pistola já engatilhada e destravada entre as almofadas. Ela girou a chave na porta da frente. Ele permaneceu em pé, encarando a porta. Ela quase se surpreendeu quando o viu ali, de braços cruzados na escuridão, silhuetado pela TV. Ela se aproximou devagar. Ele quis gritar com voz grossa. Mas se engasgou, e saiu de sua garganta um fio débil que mais pareceu um lamento. Onde a senhora... onde você estava? Ele viu seus olhos lânguidos e injetados, o rosto brilhante de suor antigo refletindo a luz da TV, os cabelos desgrenhados, a roupa desalinhada. Ela se aproximou e beijou-lhe os lábios como só ela sabia. Ele sentiu o paraíso na terra novamente, e deixou aquela língua adentrar sua boca e roçar na sua. Não sabia dizer se o hálito de álcool dela não era seu. Ela abriu seu próprio zíper, forçou-o para baixo, ele se ajoelhou à sua frente. Sentiu o gosto dela misturado com o sal das suas lágrimas. Ela apertou a cabeça dele contra seu púbis, e gemeu. 

Letra para uma valsinha




 Valsinha Antiga para Julieta

 

Julieta acorda todo dia cedo

Nas manhãs escreve textos pro jornal

À tarde na rádio ela tem mais um emprego

Que cumpre com zelo excepcional

 

Criou sozinha seus dois lindos filhos

Um tem nome de anjo e outro, de rei

Teve um ex-marido e namorados falhos

Que por irrelevantes não mais mencionarei

 

Mas ela é a mais bela dona de toda a cidade

A alma de toda festa em qualquer louvor

Seu sorriso leve enche a todos de curiosidade

Mas ela não se entrega. De quem seria o seu amor

 

 

É que um dia a vida veio e quase lhe arranca 

O seu bem mais precioso e muda seu enredo

Corredores e doutores de roupa branca

Ela abraçando um filho, embalando o medo 

 

 

Um dia ela deixou que eu lhe segurasse

Sua mão, eu tive entre as minhas mãos 

E vi a criança que dentro habita

Seus ventrículos, seu coração.

 

Eu queria encher seus olhos de tanta risada

Faze-la flutuar no meu tapete voador

Sonharmos juntos uma Itália idealizada

Faze-la feliz, afastar a dor

 

Julieta eu então lhe deixo esta valsinha

Dessas que hoje em dia quase não se fazem mais

Eu não faço isso para que um dia você seja minha

Eu lhe quero sua, com a mente em paz

 

Julieta eu então lhe canto esta carta

Vamos que eu parta sem tido tempo de lhe avisar 

Quero que saiba o quanto foi amada

E admi­rada por este seu par

 

Julieta eu estico um pouco essa canção

O que é exagero, mas ainda uma ideia me ocorreu

Sei que um dia vai explodir de novo toda a alegria no seu coração

Mesmo que não ­seja com este seu Romeu.