Sunday, June 23, 2013

Das Manifestações






Eu entendi assim: o movimento “passe-livre” é formado por estudantes de esquerda, principalmente ligados ao PSTU, PSOL e PCdoB. São revolucionários, e insistiram em manifestações já um tanto violentas, que a polícia estava acompanhando com certa amenidade, durante as duas primeiras semanas do movimento. Até que houve o caso do policial cercado e quase linchado, no centro, acho que na terça-feira, 11 de junho. A partir daí, tanto o comando – governo e secretaria de segurança - quanto a corporação da PM ficaram puctos. Na quinta-feira fatídica, dia 13 de junho, reagiram com violência desproporcional e feriram manifestantes, jornalistas e cidadãos que nada tinham a ver com a manifestação, perdendo toda a razão. A partir daí, a população geral aderiu, repudiando a violência policial, o que resultou na multiplicação dos atos e manifestantes. Mas isso gerou o que foi denominado “passeata dos coxinhas”: agora a maioria das pessoas nas ruas deram ao movimento uma tônica antipartidária, hostilizando quem se associasse a partidos políticos, antiviolência, tentando coibir o vandalismo e agressividade dos grupos originais do movimento, e antitudoqueestáaí. O vandalismo começou a ficar reservado para as altas horas da noite, quando os coxinhas viravam uma minoria. Mas a massa condenava a violência, e a mídia também evoluiu de uma falta de crítica total aos manifestantes à condenação dessas “minorias” violentas. Isso gerou um paradoxo: ao mesmo tempo em que o movimento ganhava apoio popular, as novas atitudes “burguesas” desagradaram os manifestantes iniciais, que adotaram posições confusas: na sexta-feira, 21 de junho, chegaram a anunciar que não convocariam mais manifestações mas, diante do fato delas acontecerem à sua revelia, retornaram às ruas, provavelmente com medo de perderem definitivamente alguma liderança que ainda restasse sobre o movimento.

Vamos analisar os atores dessa miscelânea: em primeiro lugar, o movimento passe livre. Seu protesto inicial era contra o aumento das passagens de ônibus e trens metropolitanos. Mesmo depois de revogados os aumentos, suas demandas tornaram-se mais radicais, como a manutenção do preço atual até 2015 ou mesmo o transporte público gratuito. Não me recordo de algum país que tenha tarifa zero para o transporte público, mas garanto que o dinheiro para tanto não sairia de outro lugar que não os cofres públicos que são, em última análise, o dinheiro da população. Os estudo econômico-financeiros desses modelos mostram-se inviáveis, mas o movimento passe-livre parece irredutível, como convém a qualquer revolucionário. Na verdade, o objetivo de revolucionários nessa fase de atuação é gerar conflito, tanto que não descansaram até que produzissem vítimas. Porque o que interessa, nessa fase de revolução, é gerar o embate entre as classes. Como está dito no manifesto do PSTU, um dos partidos que nutriam relações com os manifestantes originais do movimento:

“O PSTU é um partido formado por mulheres e homens comprometidos com a luta por um mundo mais justo e igualitário, um mundo socialista. Ao contrário dos demais partidos, o PSTU não prioriza as eleições, mas a ação direta como meio de transformar a realidade em que vivemos. É um partido composto por militantes que atuam no movimento sindical, estudantil e popular.(...) O centro do programa histórico do movimento trostquista prevê a ‘Ditadura do Proletariado’. Muitos detratores do marxismo utilizam isso para atacar os socialistas, afirmando que queremos uma ‘ditadura’, tal como havia nos países latino-americanos das décadas de 1960/1970 ou como existe hoje em Cuba ou na China. Porém, para os marxistas, ‘ditadura’ é a dominação de uma classe sobre a outra. Desta forma, vivemos hoje uma ditadura burguesa, em que uma ínfima minoria da população exerce seu controle político, econômico e militar sobre a maioria. A Ditadura do Proletariado é o predomínio da classe trabalhadora, a imensa maioria da população, sobre a burguesia. Ou seja, seria uma democracia infinitamente mais democrática que a atual falsa ‘democracia’.”

É claro que o objetivo parece justíssimo. O grande perigo desse posicionamento é quem tem levado a uma disposição a desobedecer à lei, como tem ocorrido nas manifestações pela “minoria vândala”. Esse tipo de autoritarismo é o que leva a ditaduras de fato. Foi assim na nossa funesta ditadura militar, quando um grupo de militares e políticos, com ajuda externa de países ocidentais, passaram por cima das instituições e instalaram um estado de exceção que nós conhecemos bem, e desejamos nunca mais ver acontecer. O grande perigo dos que se acham justos é quando eles começam a justificar atos ilegais por participarem de uma causa maior, que garante sua integridade ética e moral. Esse sofisma está na base de todo sistema autoritário, seja ele de direita ou de esquerda. Com Hitler foi assim, tanto quanto foi com Médici, com Lenin, com Fidel ou com Pinochet. Todos eles eram nacionalistas que acreditavam, em alguma medida, que estavam fazendo o melhor para seus países. Há uma imagem excelente sobre isso num livro de Marcelo Rubens Paiva, que li há muitos anos, acho que era o “Não És Tu, Brasil”: um revolucionário, clandestino há anos, mantém-se à custa de pequenos assaltos a supermercados. Sua célula revolucionária resume-se a ele mesmo e justifica os assaltos como sendo parte do projeto revolucionário. Fora isso, não tem outra atividade senão esconder-se num apartamento e ver TV. O próprio comportamento do PT no governo, quando decide adotar uma postura pragmática – troca de favores com PMDB, Waldomiro Dinis, escândalos da Casa Civil, Aloprados, Mensalão, tentativa de controle da imprensa, PEC 37, e muitas outras, revela essa autoindulgência de quem acha que é desculpável por ter subjacente uma causa maior. Eu quero acreditar.

A desobediência à lei - ou sua distorção - num estado democrático de direito deve ser coibida para que se garantam as instituições que sustentam esse estado. Montesquieu diz algo de que eu gosto muito, que a “Liberdade é o direito de fazer qualquer coisa que a Lei permita”. Neste sentido, a polícia tem a obrigação de garantir a preservação do patrimônio público e os direitos do restante da população. Isso não tem ocorrido. Ora leniente, ora violenta em demasia, a força policial principalmente em São Paulo tem metido os pés pelas mãos. Não que isso seja tarefa fácil e corriqueira: os acontecimentos recentes têm desnorteado a todos e confundido as autoridades. No início do embate, a polícia foi pouco atuante. Os manifestantes pichavam os ônibus, ameaçavam a burguesia presa nos congestionamentos. Quando do episódio do policial quase linchado, a polícia, governador e secretário de segurança adotaram uma postura temerária de exagero na repressão. O maior engano talvez tenha sido o de disparar balas de borracha contra multidões aparentemente pacificas, e de usar o “borrachão” indiscriminadamente e de maneira passional. Isso ocorreu principalmente na quinta-feira 13 de junho. A reação popular e da mídia foi de absoluta condenação. Foi essa ação desastrosa que catalisou a adesão em massa da população às manifestações que se seguiriam. O comparecimento de centenas de milhares de pessoas às ruas na segunda-feira dia 17 de junho, em todo o Brasil, deixou perplexos a todos. E a força policial recuou, deixando o país novamente entregue à ilegalidade: agressões sérias, depredação e incêndio criminoso de um automóvel na Assembleia Legislativa do Rio, invasão do Congresso Nacional em Brasília, queima de ônibus em Porto Alegre... quase todas ações que não encontraram resistência policial eficaz. Surpresa em São Paulo: nenhum incidente sério, a não ser a tentativa de invasão do palácio do Governo, que foi contornada sem violência excessiva.

É claro que a missão dos policiais não é fácil. São seres humanos, que recebem um salario insuficiente e têm sua vida ameaçada diariamente. Além de enfrentarem a violência habitual das cidades, recentemente ainda têm de enfrentar o extermínio sistemático da categoria, fenômeno absurdo que se iniciou no ano de 2012, mais ou menos como uma sistematização das ameaças ocorridas em 2006. Além de tudo, enfrentam a desconfiança da população, que reconhecem neles a corrupção e a violência de um sistema de segurança falido e ineficiente. Isso é um dos aspectos mais graves expostos por crises como estas: a polícia, que é o representante do Estado, não tem a mínima confiança da população. Isto é um dos problemas estruturais mais graves que temos que destrinchar para conseguirmos um pais mais justo, mais seguro e com mais cidadania. Mas não é desculpa: o comando falhou nas ordens – como a de não permitir que manifestantes chegassem à Paulista a qualquer custo – e também os policiais não mostraram preparo para uma situação destas. No momento seguinte, voltaram à leniência e prevaricação ao serem complacentes com atos de vandalismo. No momento atual, com a opinião pública sabendo discernir o que é vandalismo e provocação e o que é manifestação razoável, parece que a polícia também chega a um equilíbrio.

O interessante do abuso policial foi que ele mobilizou a população em torno das manifestações. Ou seja, não fossem os exageros dos manifestantes originais, não haveria o exagero policial e então não haveria a manifestação popular generalizada. A História acontecendo meio ao acaso. O movimento saindo do controle da liderança original. As demandas mudando de aspecto.

Quando os “coxinhas” (a denominação coxinha surgiu entre os ativistas mais “profissionais”) saíram à rua na segunda-feira 17, tudo era diferente. A bandeira do passe-livre já não era o centro das demandas: agora, tudo era motivo para protesto, ou seja, o estado da nação. Apesar da bagunça, é possível resumir tudo numa ideia principal: a população nas ruas não se sente representada pelo sistema político atual – dada a rejeição aos partidos políticos durante as manifestações – e discorda de quase tudo que o governo faz em vários níveis. O fisiologismo, o loteamento do poder pelo apoio político, a corrupção, a legislação em causa própria, o descaso com as demandas reais da população, a atuação política pelo motivo único de ganhar mais poder político, tudo isso parece ser a força motriz desse movimento mais geral. Essa população que compareceu em massa às ruas não está à esquerda do PT, como os manifestantes iniciais. São, sim, representantes da classe média e classe alta que vocalizam um descontentamento “burguês”, sem ideologia, pragmático, que exige que o governo faça o trabalho para o qual foi designado e use melhor o dinheiro recolhido com a maior carga tributária do mundo. É possível que nem representem a maioria do eleitorado, seduzido por novas esmolas do governo Dilma, como o programa “Minha Casa Melhor”, estrategicamente lançado nos comerciais da copa das confederações. Mas a burguesia mostra-se muito descontente, como atestam as vaias que Dilma recebeu na abertura daquela mesma copa.

O significado numérico e eleitoral disso é difícil de discernir-se. Mas foi suficiente para deixar atônita toda a classe política. De que pelo menos uma parcela significante e vocalizada da população perdeu a paciência. Quer ver mudança. Quer ver resultado administrativo. Como fazê-lo? Com uma mudança profunda no sistema político. Moldar um sistema que não garanta a impunidade da classe política. Que coíba a legislação em benefício próprio. Que instituía mecanismos de controle da corrupção, e não o contrário – vide a injustificável PEC 37. Que institua mecanismos de produtividade da classe política, obrigando-os a produzir soluções para as demandas da população.

Temos como realizar tamanha tarefa? É possível que não, infelizmente. Mantidas as exceções individuais que só atestam a regra, o que vemos é um executivo corrupto e entregue aos aliados escorpiônicos, um legislativo leniente, corrupto e fisiológico, um judiciário ora rígido (como nas condenações do mensalão), ora auto indulgente (aprovação dos novos TFRs) ou mesmo complacente (o prazo de análise dos recursos do próprio mensalão), a falta de vergonha nacional da classe política, que aderiu ao pragmatismo fisiológico sem maiores preocupações com a opinião pública, e transformou todo ano em ano eleitoral... É difícil imaginar que estes mesmos atores vão realizar cortes na própria carne, estoicamente, puramente para cumprirem os deveres que aviltam há décadas, de maneira progressivamente mais grave.

Por outro lado, a novidade é que parte da população parece ter realmente acordado para estas realidades, e mostram seu descontentamento e impaciência, mesmo que de forma aparentemente desorganizada. Vai ser interessante ver o que isso produz. Vou torcer para que produzam um processo de mudança no sentido de recuperarem-se as instituições republicanas, os partidos e os políticos. Isso depende basicamente de uma atitude destes mesmos políticos. E vou torcer contra a continuidade do processo de desmoralização do Estado. Porque este tipo de desmoralização, com a desconfiança da população em relação às instituições, abre muito espaço para o autoritarismo, coisa que o país não quer ver novamente.