Das Manifestações
Eu entendi assim: o movimento “passe-livre” é formado por estudantes de esquerda, principalmente ligados ao PSTU, PSOL e PCdoB. São revolucionários, e insistiram em manifestações já um tanto violentas, que a polícia estava acompanhando com certa amenidade, durante as duas primeiras semanas do movimento. Até que houve o caso do policial cercado e quase linchado, no centro, acho que na terça-feira, 11 de junho. A partir daí, tanto o comando – governo e secretaria de segurança - quanto a corporação da PM ficaram puctos. Na quinta-feira fatídica, dia 13 de junho, reagiram com violência desproporcional e feriram manifestantes, jornalistas e cidadãos que nada tinham a ver com a manifestação, perdendo toda a razão. A partir daí, a população geral aderiu, repudiando a violência policial, o que resultou na multiplicação dos atos e manifestantes. Mas isso gerou o que foi denominado “passeata dos coxinhas”: agora a maioria das pessoas nas ruas deram ao movimento uma tônica antipartidária, hostilizando quem se associasse a partidos políticos, antiviolência, tentando coibir o vandalismo e agressividade dos grupos originais do movimento, e antitudoqueestáaí. O vandalismo começou a ficar reservado para as altas horas da noite, quando os coxinhas viravam uma minoria. Mas a massa condenava a violência, e a mídia também evoluiu de uma falta de crítica total aos manifestantes à condenação dessas “minorias” violentas. Isso gerou um paradoxo: ao mesmo tempo em que o movimento ganhava apoio popular, as novas atitudes “burguesas” desagradaram os manifestantes iniciais, que adotaram posições confusas: na sexta-feira, 21 de junho, chegaram a anunciar que não convocariam mais manifestações mas, diante do fato delas acontecerem à sua revelia, retornaram às ruas, provavelmente com medo de perderem definitivamente alguma liderança que ainda restasse sobre o movimento.
Vamos analisar os atores dessa miscelânea:
em primeiro lugar, o movimento passe livre. Seu protesto inicial era contra o
aumento das passagens de ônibus e trens metropolitanos. Mesmo depois de
revogados os aumentos, suas demandas tornaram-se mais radicais, como a
manutenção do preço atual até 2015 ou mesmo o transporte público gratuito. Não
me recordo de algum país que tenha tarifa zero para o transporte público, mas
garanto que o dinheiro para tanto não sairia de outro lugar que não os cofres
públicos que são, em última análise, o dinheiro da população. Os estudo
econômico-financeiros desses modelos mostram-se inviáveis, mas o movimento
passe-livre parece irredutível, como convém a qualquer revolucionário. Na
verdade, o objetivo de revolucionários nessa fase de atuação é gerar conflito,
tanto que não descansaram até que produzissem vítimas. Porque o que interessa,
nessa fase de revolução, é gerar o embate entre as classes. Como está dito no manifesto
do PSTU, um dos partidos que nutriam relações com os manifestantes originais do
movimento:
“O PSTU é um partido formado por mulheres e
homens comprometidos com a luta por um mundo mais justo e igualitário, um mundo
socialista. Ao contrário dos demais partidos, o PSTU não prioriza as eleições,
mas a ação direta como meio de transformar a realidade em que vivemos. É um
partido composto por militantes que atuam no movimento sindical, estudantil e
popular.(...) O centro do programa histórico do movimento trostquista prevê a
‘Ditadura do Proletariado’. Muitos detratores do marxismo utilizam isso para
atacar os socialistas, afirmando que queremos uma ‘ditadura’, tal como havia
nos países latino-americanos das décadas de 1960/1970 ou como existe hoje em Cuba
ou na China. Porém, para os marxistas, ‘ditadura’ é a dominação de uma classe
sobre a outra. Desta forma, vivemos hoje uma ditadura burguesa, em que uma
ínfima minoria da população exerce seu controle político, econômico e militar
sobre a maioria. A Ditadura do Proletariado é o predomínio da classe
trabalhadora, a imensa maioria da população, sobre a burguesia. Ou seja, seria
uma democracia infinitamente mais democrática que a atual falsa ‘democracia’.”
É claro que o objetivo parece justíssimo. O
grande perigo desse posicionamento é quem tem levado a uma disposição a
desobedecer à lei, como tem ocorrido nas manifestações pela “minoria vândala”.
Esse tipo de autoritarismo é o que leva a ditaduras de fato. Foi assim na nossa
funesta ditadura militar, quando um grupo de militares e políticos, com ajuda
externa de países ocidentais, passaram por cima das instituições e instalaram
um estado de exceção que nós conhecemos bem, e desejamos nunca mais ver
acontecer. O grande perigo dos que se acham justos é quando eles começam a
justificar atos ilegais por participarem de uma causa maior, que garante sua
integridade ética e moral. Esse sofisma está na base de todo sistema
autoritário, seja ele de direita ou de esquerda. Com Hitler foi assim, tanto
quanto foi com Médici, com Lenin, com Fidel ou com Pinochet. Todos eles eram
nacionalistas que acreditavam, em alguma medida, que estavam fazendo o melhor
para seus países. Há uma imagem excelente sobre isso num livro de Marcelo
Rubens Paiva, que li há muitos anos, acho que era o “Não És Tu, Brasil”: um
revolucionário, clandestino há anos, mantém-se à custa de pequenos assaltos a
supermercados. Sua célula revolucionária resume-se a ele mesmo e justifica os
assaltos como sendo parte do projeto revolucionário. Fora isso, não tem outra
atividade senão esconder-se num apartamento e ver TV. O próprio comportamento
do PT no governo, quando decide adotar uma postura pragmática – troca de
favores com PMDB, Waldomiro Dinis, escândalos da Casa Civil, Aloprados,
Mensalão, tentativa de controle da imprensa, PEC 37, e muitas outras, revela
essa autoindulgência de quem acha que é desculpável por ter subjacente uma
causa maior. Eu quero acreditar.
A desobediência à lei - ou sua distorção - num
estado democrático de direito deve ser coibida para que se garantam as
instituições que sustentam esse estado. Montesquieu diz algo de que eu gosto
muito, que a “Liberdade é o direito de fazer qualquer coisa que a Lei permita”.
Neste sentido, a polícia tem a obrigação de garantir a preservação do patrimônio
público e os direitos do restante da população. Isso não tem ocorrido. Ora leniente,
ora violenta em demasia, a força policial principalmente em São Paulo tem
metido os pés pelas mãos. Não que isso seja tarefa fácil e corriqueira: os
acontecimentos recentes têm desnorteado a todos e confundido as autoridades. No
início do embate, a polícia foi pouco atuante. Os manifestantes pichavam os
ônibus, ameaçavam a burguesia presa nos congestionamentos. Quando do episódio
do policial quase linchado, a polícia, governador e secretário de segurança
adotaram uma postura temerária de exagero na repressão. O maior engano talvez
tenha sido o de disparar balas de borracha contra multidões aparentemente
pacificas, e de usar o “borrachão” indiscriminadamente e de maneira passional.
Isso ocorreu principalmente na quinta-feira 13 de junho. A reação popular e da
mídia foi de absoluta condenação. Foi essa ação desastrosa que catalisou a
adesão em massa da população às manifestações que se seguiriam. O
comparecimento de centenas de milhares de pessoas às ruas na segunda-feira dia
17 de junho, em todo o Brasil, deixou perplexos a todos. E a força policial
recuou, deixando o país novamente entregue à ilegalidade: agressões sérias,
depredação e incêndio criminoso de um automóvel na Assembleia Legislativa do
Rio, invasão do Congresso Nacional em Brasília, queima de ônibus em Porto
Alegre... quase todas ações que não encontraram resistência policial eficaz.
Surpresa em São Paulo: nenhum incidente sério, a não ser a tentativa de invasão
do palácio do Governo, que foi contornada sem violência excessiva.
É claro que a missão dos policiais não é
fácil. São seres humanos, que recebem um salario insuficiente e têm sua vida
ameaçada diariamente. Além de enfrentarem a violência habitual das cidades,
recentemente ainda têm de enfrentar o extermínio sistemático da categoria,
fenômeno absurdo que se iniciou no ano de 2012, mais ou menos como uma
sistematização das ameaças ocorridas em 2006. Além de tudo, enfrentam a
desconfiança da população, que reconhecem neles a corrupção e a violência de um
sistema de segurança falido e ineficiente. Isso é um dos aspectos mais graves
expostos por crises como estas: a polícia, que é o representante do Estado, não
tem a mínima confiança da população. Isto é um dos problemas estruturais mais
graves que temos que destrinchar para conseguirmos um pais mais justo, mais
seguro e com mais cidadania. Mas não é desculpa: o comando falhou nas ordens –
como a de não permitir que manifestantes chegassem à Paulista a qualquer custo
– e também os policiais não mostraram preparo para uma situação destas. No
momento seguinte, voltaram à leniência e prevaricação ao serem complacentes com
atos de vandalismo. No momento atual, com a opinião pública sabendo discernir o
que é vandalismo e provocação e o que é manifestação razoável, parece que a
polícia também chega a um equilíbrio.
O interessante do abuso policial foi que
ele mobilizou a população em torno das manifestações. Ou seja, não fossem os
exageros dos manifestantes originais, não haveria o exagero policial e então
não haveria a manifestação popular generalizada. A História acontecendo meio ao
acaso. O movimento saindo do controle da liderança original. As demandas
mudando de aspecto.
Quando os “coxinhas” (a denominação coxinha
surgiu entre os ativistas mais “profissionais”) saíram à rua na segunda-feira
17, tudo era diferente. A bandeira do passe-livre já não era o centro das
demandas: agora, tudo era motivo para protesto, ou seja, o estado da nação.
Apesar da bagunça, é possível resumir tudo numa ideia principal: a população
nas ruas não se sente representada pelo sistema político atual – dada a
rejeição aos partidos políticos durante as manifestações – e discorda de quase
tudo que o governo faz em vários níveis. O fisiologismo, o loteamento do poder
pelo apoio político, a corrupção, a legislação em causa própria, o descaso com
as demandas reais da população, a atuação política pelo motivo único de ganhar
mais poder político, tudo isso parece ser a força motriz desse movimento mais
geral. Essa população que compareceu em massa às ruas não está à esquerda do
PT, como os manifestantes iniciais. São, sim, representantes da classe média e
classe alta que vocalizam um descontentamento “burguês”, sem ideologia,
pragmático, que exige que o governo faça o trabalho para o qual foi designado e
use melhor o dinheiro recolhido com a maior carga tributária do mundo. É
possível que nem representem a maioria do eleitorado, seduzido por novas
esmolas do governo Dilma, como o programa “Minha Casa Melhor”, estrategicamente
lançado nos comerciais da copa das confederações. Mas a burguesia mostra-se
muito descontente, como atestam as vaias que Dilma recebeu na abertura daquela
mesma copa.
O significado numérico e eleitoral disso é
difícil de discernir-se. Mas foi suficiente para deixar atônita toda a classe
política. De que pelo menos uma parcela significante e vocalizada da população
perdeu a paciência. Quer ver mudança. Quer ver resultado administrativo. Como
fazê-lo? Com uma mudança profunda no sistema político. Moldar um sistema que
não garanta a impunidade da classe política. Que coíba a legislação em
benefício próprio. Que instituía mecanismos de controle da corrupção, e não o
contrário – vide a injustificável PEC 37. Que institua mecanismos de
produtividade da classe política, obrigando-os a produzir soluções para as
demandas da população.
Temos como realizar tamanha tarefa? É possível
que não, infelizmente. Mantidas as exceções individuais que só atestam a regra,
o que vemos é um executivo corrupto e entregue aos aliados escorpiônicos, um
legislativo leniente, corrupto e fisiológico, um judiciário ora rígido (como
nas condenações do mensalão), ora auto indulgente (aprovação dos novos TFRs) ou
mesmo complacente (o prazo de análise dos recursos do próprio mensalão), a
falta de vergonha nacional da classe política, que aderiu ao pragmatismo
fisiológico sem maiores preocupações com a opinião pública, e transformou todo
ano em ano eleitoral... É difícil imaginar que estes mesmos atores vão realizar
cortes na própria carne, estoicamente, puramente para cumprirem os deveres que
aviltam há décadas, de maneira progressivamente mais grave.
Por outro lado, a novidade é que parte da
população parece ter realmente acordado para estas realidades, e mostram seu
descontentamento e impaciência, mesmo que de forma aparentemente desorganizada.
Vai ser interessante ver o que isso produz. Vou torcer para que produzam um
processo de mudança no sentido de recuperarem-se as instituições republicanas,
os partidos e os políticos. Isso depende basicamente de uma atitude destes
mesmos políticos. E vou torcer contra a continuidade do processo de
desmoralização do Estado. Porque este tipo de desmoralização, com a
desconfiança da população em relação às instituições, abre muito espaço para o
autoritarismo, coisa que o país não quer ver novamente.