O Cliente
(resumo de um romance a ser escrito. Ilustração: Gustav Klimt, "Danae", 1907)
Todos os dias úteis, às 3 da tarde, Dona Glória recebia seu único cliente. Era um homem que também aparentava ter os seus 80 anos; comparecia com a solenidade contida dos homens que usam terno e gravata mesmo nos dias de verão. Dona Glória o recebia na porta, subiam vagarosamente as escadas que levavam aos aposentos da idosa prostituta. Trancavam-se durante toda a tarde. Certas vezes, deitavam-se na cama e trocavam carícias íntimas e secas. Na maior parte dos encontros, conversavam, ou simplesmente compartilhavam, mudos, a vista das encostas da Lapa através da janela que dava para a rua. Dona Glória e seu cliente eram mais antigos na casa que qualquer dos funcionários.
O homem pagava sempre o mês adiantado, o que garantira a estabilidade de Glória perante os novos donos do estabelecimento que já não tinham idade suficiente para haver testemunhado seus anos áureos, quando a casa ficava na Av. Paulista. Àquela época, todas as noites, Glória aguardava o momento certo para descer as escadarias da grande mansão, em cujos salões se reuniam os barões do café, os artistas, os políticos, os homens de bem, afinal, da sociedade paulistana; a música não parava, necessariamente, mas as conversas eram suspensas por um momento, enquanto os olhares todos se voltavam para a figura que preenchia a sala com seu sorriso, sua luz e seu perfume.
Teve inúmeros amantes, famosos e poderosos. Viveu uma vida sofisticada, com viagens a países exóticos, presentes luxuosos e festas em que circulava junto à elite brasileira sem enfrentar rejeição. Sua beleza não provinha necessariamente de seus atributos físicos – era uma mulher bonita, mas tinha um corpo peculiar: mãos grandes e quadradas, quadris largos, seios pequenos, cabelos ruivos, uma pele branca e incoerentemente hirsuta. Mas tinha a faculdade que certas mulheres possuem, de seduzir.
Ainda criança, surpreendeu-a sua amiga de bonecas querendo beija-la. Beijaram-se, e a amiga amou-a para sempre. Criou uma teoria segundo a qual seu sexo exalava um “cheirinho invisível” que ia atraindo os amiguinhos, os tios, o homem da padaria, o padrasto – seu pai desaparecera antes de seu nascimento. Ela foi com todos, movida por uma curiosidade casta e quase científica. Aprendeu muito sobre os homens, mas principalmente sobre si mesma. Glória sempre fora assim: curiosa e intensa.
Tinha fases. Certa vez, converteu-se fervorosamente ao catolicismo. Ia à primeira missa todos os dias. Dava aulas de catecismo e ajudava os pobres; fazia suspirar padres, sacristãos, coroinhas e freiras. Mas era fiel ao marido. Por essa época, Glória casara com um amigo de adolescência. Heitor era portador de uma introversão contornável, que ele atenuava com senso de humor e inteligência. Glória apaixonara-se por ele no Liceu Mário de Andrade, onde cursaram o científico. Foi algo que ele disse a respeito da professora de teatro. Tiveram um acesso de riso e foram expulsos da aula. Treparam no escuro dos panos da coxia, abafando os gemidos com beijos. Apesar de sua relativa timidez, Heitor sentia-se estranhamente seguro no campo sexual, e Glória sentia-se realizada como com nenhum outro homem. Casaram-se contra a vontade da família dele e sem grande conforto material. A mãe de Glória, por outro lado, consentiu com certo alívio, e foi morar com seu amante em um bairro afastado. Glória e Heitor passavam as tardes dos finais de semana no quarto alugado no Bixiga, deitados no colchão, sua única mobília, lendo os livros um do outro, entre um coito e outro. A vida parecia simples e certeira.
Heitor, porém, alimentava um cinismo que aos poucos consumia sua capacidade de realizar coisas. Sua inteligência era, via de regra, superior à das pessoas com que ele trabalhava, o que o fazia nutrir um desprezo arrogante pelos seres humanos em geral e seus pares em particular. O resultado disso é que nunca levava a sério sua vida, intimamente acreditando estar reservado para algum grande desígnio que ainda estava por descobrir. Foi nessa época que Glória começou a olhar para homens poderosos e bem sucedidos.
O primeiro foi seu patrão. Às noites, Glória trabalhava como garçonete em um restaurante. O proprietário, dono de diversos estabelecimentos em São Paulo, passava duas vezes por semana para acertar as contas com o gerente. Logo, Glória foi promovida a gerente, e suas contas eram acertadas a portas fechadas. Outros romances seguiram-se.
Glória achava que deveria sentir alguma culpa por seu comportamento infiel, mas não sentia. Sentia, sim, um vazio, que somente preenchia com os homens que colecionava. Sobreveio a fase católica. A carolice de Glória irritava a sensibilidade cética de Heitor, que aceitava sua crença com uma resignação desapontada e ignorante. Glória aprofundava-se nos mistérios da fé com a volúpia de uma iniciante. Mas é claro que isso não durou muito. Concluiu que sua indisciplina conjugal era fruto de tudo que em seu marido a decepcionava: sua preguiça, seu olhar pueril em relação à vida. Separaram-se pela primeira vez.
Houve várias separações. Durante elas, Glória conhecia os homens que queria. E queria muitos, na verdade . Heitor, por sua vez, deprimia-se, apesar de Glória não deixar de visita-lo. Seus momentos de amor eram mais intensos e agressivos, durante esses períodos.
Heitor resolveu tentar ser o homem que imaginava que Glória queria que ele fosse. Não foi um processo rápido, nem fácil, mas aconteceu. Teve de trabalhar seriamente com coisas que não faziam muito sentido em sua vida. Conseguiu um emprego como redator de anúncios. Encontrou seus limites, expandiu suas possibilidades, e aproveitou o surgimento da televisão no Brasil para prosperar. Em poucos anos, tornou-se um homem rico e influente.
Glória saía de sua fase política. Voltara de sua viagem à União Soviética depois de um período de grande entusiasmo com seus camaradas bolchevistas. (Dizem que existe uma estátua sua em algum lugar da sede do partido em Moscou.) Encontrou Heitor e fascinou-se. Voltaram a morar juntos.
Essa fase durou alguns anos. Heitor crescia profissionalmente tanto quanto o desejo de Glória por outros homens. Até o dia em que flagrou-a com outro, em sua própria cama. Ele nem mesmo havia chegado mais cedo em casa, como é geralmente o caso nessas histórias de flagrantes conjugais: Glória e seu novo amante haviam sucumbido ao sono, após várias horas de exercícios sexuais.
Glória, então, concluiu que nunca seria mulher de um só homem. Afastou-se, e Heitor não teria notícias dela por vários anos.
***
Reencontraram-se numa festa de Assis Chateaubriand. Na mansão da Avenida Paulista. Chatô reservara o lugar especialmente para sua função particular. No momento perfeito, Glória fez sua aparição: desceu a escadaria da sala principal irradiando sua luz impossível. Não se abalou quando percebeu o olhar de Heitor entre os que a cobiçavam. Atravessou o salão e foi beijar o anfitrião.
***
Hoje, Heitor e Glória contemplam a vista deteriorada da Lapa, quase todas as tardes. Ele se casou novamente, tem 3 filhos já adultos, mas nunca deixou de visita-la. No início, ela não achou que seria uma boa idéia, mas acabou acedendo. Heitor contenta-se com a idéia de compartilhar a velhice com a mulher que sempre amou.