On the Road no Sertão
Então, como estava dizendo, o Guimarães Rosa é o cara. Ganhei de presente suas obras completas, no dia dos pais. Já faz um tempo, é verdade, mas são completas; demora, mesmo.
Além das coisas que ele escreveu, tem as coisas que ele disse, numa interessante entrevista ao seu tradutor alemão, de que agora não tenho o nome, aqui à mão. O Guimarães viajava! Provavelmente bêbado, ele não conseguia falar de literatura, só e simplesmente: viajava na metafísica. Acuava o alemão, coitado, na sua seriedade saxônica, enquanto generalizava carnavalescamente sobre os homens e as coisas. O tradutor, meio contrariado com as desveredas da entrevista, tenta conduzi-lo aos temas mais terrenos ou literários, enquanto que o Guimarães Rosa fala alto, assustando as pessoas no lobby do hotel, gesticulando perigosamente com seu dry-martini, fazendo afundar seu interlocutor na poltrona de couro. Imagino eu...
Era quase um tropicalista sertanejo. Tropicalista, pela exuberância da expressividade, na paixão pelas posições parciais, pelo drinque ameaçando molhar o alemão, o que me lembrou outras figuras tropicais: Glauber, Zé Celso, Villa-Lobos, Tom Zé, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro. Gente que falava e fala alto, com a boca cheia de tesão, alvejando o interlocutor com seus perdigotos voluptuosos.
Acho bonito, isso, essa gente extrovertendo o que ela pensa, sem medo do inconveniente porventura. Uma vez eu vi um vídeo de uma cena gozada: o Caetano, que é um desses caras, recebe no camarim, na década de 1970, o Glauber Rocha. O Glauber não deixa o outro falar. Gordo e suadão, grita, gesticula, defende teses, funda e refunda o Brasil, enquanto Caê fica ali, estranho, sentadinho, magrelo, tentando dar uma palhinha, em vão. Exuberância é relativa.
Não sei exatamente se Guimarães era uma pessoa assim. Talvez tenha sido só quando sentava à frente de tradutores alemães. Mas exuberava na linguagem, sem dúvida. O virtuosismo da sua escrita tem fundamentos que hoje fazem muito sentido para mim. A procura dele é pela palavra estranha, pelo uso incomum, pelo arcaísmo e pelo neologismo, mas ele o faz não por vaidade: faz para recuperar o valor das palavras e torná-las mais expressivas. Recupera a etimologia, o sentido primário dos termos, que às vezes fica esquecido pelo uso, pelo abuso e pelo lugar-comunismo. Por exemplo, ele usou "sozinhozinho", que parece um neologismo. Muito só, quer dizer. Mas, muito só MESMO! Na verdade, ele recupera, pela repetição do sufixo, o processo original de sufixação da palavra "só". "Sozinho", quando foi inventada, queria dizer, pelo uso do diminutivo, isso: extremamente só. O diminutivo acentua o valor da solidão. Mas o uso constante da palavra fez com que perdesse a força, e "sozinho" acabou reduzido a sinônimo de "só". O Guimarães, espertão, percebia esses processos de emboloramento da língua, e cuspia soluções pra recuperar o frescor. Ao repetir o diminutivo, ele reedita o processo de formação da palavra, e o sentido inicial de "sozinho" ressurge, revigorado e chamado à atenção pela estranheza. E tudo nele funciona assim, ele não se permite à linguagem fácil e semi-morta, ele ressuscita as palavras e dá à luz novas, numa fluência que parece impossível, à primeira vista. Mas o cara era poliglota, falava uma porradaria de idiomas, lia em mais um montão, e ainda tinha estudado a gramática de alguns outros. Ele dizia que isso era muito bom para visualizar as engrenagens da nossa própria língua, e devia ter razão. Os rudimentos de latim e grego que a gente acaba aprendendo durante a faculdade de medicina, por exemplo, me abrem os olhos e as narinas para certos sentidos esquecidos das palavras. "Exuberante", por exemplo, que usei várias vezes acima, vem ex- ubere, que significa saído do ubre, das tetas, originalmente. Um jorro de leite: vitalidade, fertilidade, abundância... Assim, o Guimarães Rosa revitalizou a língua, ressuscitou palavras moribundas, deu novos sentidos e novos caminhos para tudo o que poderia ser escrito. Não vou entrar no mérito do conteúdo do que ele escreveu, que é o universo em forma de caipirice. Ele é o cara!
Andei lendo, também, o Jack Kerouac, "On The Road". É um daqueles livros que eu mencionei na abertura desse blog, que eu nunca tinha lido, mas tinha muitas opiniões a respeito. Kerouac é o oposto de Rosa, sua linguagem não tem nada de virtuosa, nem o enredo tem qualquer coisa de assombroso. É tudo tão profundo quanto numa canção pop. O pop tem isso: o maior pecado, sem redenção, a ser evitado a qualquer custo, é a profundidade, a especulação. A linguagem que ele usa é cheia de gírias que foram correntes no final dos anos 1940, mas que hoje não fazem muito sentido imediato. Isso é uma das coisas que o Guimarães evitava: usar palavras que fossem morrer dali há pouco. Ouvi outra pessoa falar mal da gíria usando o seguinte argumento: a gíria, em geral, empobrece a língua, pelo seu próprio processo de formação. Em geral, esse processo consiste em atribuir um novo sentido a uma palavra já existente. Assim, uma mesma palavra, "bicho", por exemplo, pode significar "animal" ou "amigo", reduzindo o número de palavras utilizadas no idioma corrente. Faz sentido. Mas eu uso, o Jack usava, e o Jack também é o cara, à sua maneira.
O livro levou milhares de moleques, no mundo todo, a literalmente cair na estrada e a explorar possibilidades de suas vidas antes insuspeitadas. Essa geração "beat" deu origem, claramente, à contracultura dos anos 1960, e a toda forma de bicho-grilismo e contra-caretice, provavelmente. O livro é suave e sem destino como um road-movie, mesmo. Aliás, o Walter Salles o está adaptando para o cinema, fiquei sabendo.
O que mais fascina na história de Sal Paradise e Dean Moriarty, as personagens centrais, é o espírito desarmado que têm. Passam os anos viajando sem muito propósito, a não ser encontrar amigos e viver experiências, movidos pela vagabundagem e a volúpia de viver.
São tolerantes com as idiossincrasias dos que encontram, com as babaquices dos amigos e desconhecidos, perpetram pequenos crimes para sobreviver, de vez em quando, e passivamente escandalizam alguns representantes da normalidade americana do final dos anos 1940.
O "On The Road" é um livro pop, "cool". A música pop também não admite muita profundidade, sob pena de ficar piegas, o que seria indesculpável. Compor uma canção não é necessariamente uma tarefa fácil: é complicado escrever algo relevante mantendo essa superficialidade que o pop exige. Musicalmente, por exemplo, tem que esquecer tudo de música. Aliás, quando entra um músico novo na produtora, eu geralmente tenho que fazer uma lavagem cerebral no cara. Músicos, em geral, são pessoas apaixonadas pela música, e paixão leva à intensidade e à complexidade. O pop não é complexo, é direto e simples. Um músico, quando ainda é um músico que se leva demasiadamente a sério, pode cair na tentação de escrever música no intuito de mostrar que é um bom músico. O pop, em geral, não admite muito disso, apesar das viagens egóticas de certos superstars, que resolvem complicar sua linguagem. O irônico é que essas tentativas acabam gerando obras que frequentemente são aclamadas como revolucionárias, mas que em geral são arremedos rudimentares de técnicas já exploradas em outros gêneros, como o jazz e a música de concerto, dita clássica. Então, para compor uma canção genuinamente pop, a gente tem de esquecer séculos de tradição, todos os anos de aula de harmonia e improvisação e contraponto e etc. E fazer uma música totalmente básica, intuitiva, provavelmente redundando o que já foi feito um milhão de vezes, e ainda assim achar nas entrelinhas um espaço para criar a originalidade, nos detalhes. E a poesia deve ser hábil o suficiente para lamber a alma das pessoas, e repercutir no seu recheio.
Tudo isso é um exercício de desapego. Paradoxalmente, é voltar a ouvir música como os mesmos ouvidos ingênuos e apaixonados da época em que a gente decide ser músico.
Respeito a canção de Jack, tanto quanto a sinfonia do Guimarães.