A Morte, Novamente...
(Fancis Bacon, "Head VI", 1949)
O Tomy foi à produtora na segunda-feira passada. Veio pedir conselhos profissionais, indicações de contatos, precisava de emprego. Chegou munido de um laconismo quase impenetrável e uma irritação sutil de quem já perdeu a paciência com as esperas da vida. Eu senti urgência em ajudá-lo, tracei um plano de prospecção para ele, fiquei ao telefone mais de uma hora em ligações de apresentação. Coisa que eu não faço normalmente. É claro que o Tomy não era qualquer um, era o irmão do Dudu, casado com a irmã da mulher de meu irmão. O Dudu eu conheço bem, boa-praça, dedicado companheiro de uísque nas festas de família, dono de um coração gigante e sabedor de umas histórias de fazenda, caçada e pescaria que ele sempre repete todas as vezes que sentamos para beber, mas que eu sempre ouço com interesse.
O Tomy, não. Sujeito quieto, fazedor de vídeos, fez um documentário sobre samba. Era tudo que eu sabia dele. Talvez por isso não tenha valorizado a sensação de vazio que ele me transmitiu. Não era nada de objetivo. Na verdade, se eu fosse realmente avaliar seu humor naquele dia, diria que estava normal. Falou articuladamente, estava bem vestido, tinha vindo ao meu encontro por iniciativa própria. Mas comunicava um vazio, de alguma forma. Eu não sentia vontade de falar com ele, algo nele me dava medo de mim mesmo. Mas isso são percepções retrospectivas; pode ser que hoje eu pense dessa maneira somente por saber o que aconteceu depois.
Saiu da produtora com uma lista de pessoas para ligar, já avisadas de que ligaria. No dia seguinte, mandou-me o seguinte email:
Dimi,
Já consegui falar com algumas pessoas.
A Maristela foi muito simpática. Estou levando meu filme para ela dar uma
olhada.
Te ligo quando tiver novidades.
Abraço
Tomy
Não parece um texto de alguém prestes a se matar.
Quatro dias depois, ontem, minha cunhada Rafaela ligou avisando que estava sendo velado no cemitério do Morumbi. Enforcou-se com o cabo da tv.
***
Há aproximadamente 10 anos, meu ex-cunhado Lúcio enforcou-se com o cordão da capoeira. Há uns tantos anos, aproximadamente na mesma época, meu colega de medicina Popi matou-se com uma overdose de barbitúricos e minha colega de medicina Ieda matou-se com uma injeção de potássio. Quando eu ainda morava em Boston, em 1994, o namorado da Rebecca, Rafaello, pulou do prédio onde morava (então descobrimos que ele era o rei da Itália, estudando incógnito na Harvard, todos os papparazzi do mundo apareceram ao mesmo tempo).
Não vou falar sobre o desespero, sobre a depressão, sobre a desistência. Mas sim sobre o que esses casos tinham em comum: todas essas vítimas, além de serem os únicos suicidas que conheci pessoalmente, estavam sob o efeito de anti-depressivos modernos, de uma classe chamada SSRI, inibidores seletivos da recaptação de serotonina. Prozac, Zoloft, Paxil, esses, entre outros.
Se você fizer uma busca ligeira no Google, utilizando as palavras-chave "Prozac, Zoloft, Suicide", aprende rapidamente que a correlação entre essas drogas e um aumento na taxa de suicídio não é novidade. Alguns estudos apontam uma incidência de quase 4% de suicídios entre os pacientes que utilizam esse tipo de droga, contra 0,2 a 0,8% entre os que utilizam outros antidepressivos. Existem milhares de processos na justiça americana contra os laboratórios que os fabricam, todos por responsabilidade em suicídios. Há vários estudos clínicos associando estes antidepressivos a efeitos colaterais como irritação, mania, agressividade, auto-agressões e outros. Algumas crianças sob o efeito dessas drogas exibem um comportamento estereotipado de estapear o próprio rosto.
Li o relato de um caso em que os pais descrevem os últimos dias de vida de sua filha de 16 anos. Ela estava ansiosa em relação a um namoro. Após uma consulta de 30 minutos, um terapeuta indicou receitou 25 mg de Zoloft. Alguns dias depois, ela se internou voluntariamente, por não se sentir segura com a droga. Na internação, aumentaram sua dose para 150 mg diárias. Ela se enforcou no terceiro dia de alta.
Nos EUA, hoje as embalagens dessas drogas vêm com um aviso numa moldura negra, avisando quanto ao maior risco de suicídio. Aqui, nunca vi ninguém falar nada a respeito.
(Fancis Bacon, "Head VI", 1949)
O Tomy foi à produtora na segunda-feira passada. Veio pedir conselhos profissionais, indicações de contatos, precisava de emprego. Chegou munido de um laconismo quase impenetrável e uma irritação sutil de quem já perdeu a paciência com as esperas da vida. Eu senti urgência em ajudá-lo, tracei um plano de prospecção para ele, fiquei ao telefone mais de uma hora em ligações de apresentação. Coisa que eu não faço normalmente. É claro que o Tomy não era qualquer um, era o irmão do Dudu, casado com a irmã da mulher de meu irmão. O Dudu eu conheço bem, boa-praça, dedicado companheiro de uísque nas festas de família, dono de um coração gigante e sabedor de umas histórias de fazenda, caçada e pescaria que ele sempre repete todas as vezes que sentamos para beber, mas que eu sempre ouço com interesse.
O Tomy, não. Sujeito quieto, fazedor de vídeos, fez um documentário sobre samba. Era tudo que eu sabia dele. Talvez por isso não tenha valorizado a sensação de vazio que ele me transmitiu. Não era nada de objetivo. Na verdade, se eu fosse realmente avaliar seu humor naquele dia, diria que estava normal. Falou articuladamente, estava bem vestido, tinha vindo ao meu encontro por iniciativa própria. Mas comunicava um vazio, de alguma forma. Eu não sentia vontade de falar com ele, algo nele me dava medo de mim mesmo. Mas isso são percepções retrospectivas; pode ser que hoje eu pense dessa maneira somente por saber o que aconteceu depois.
Saiu da produtora com uma lista de pessoas para ligar, já avisadas de que ligaria. No dia seguinte, mandou-me o seguinte email:
Dimi,
Já consegui falar com algumas pessoas.
A Maristela foi muito simpática. Estou levando meu filme para ela dar uma
olhada.
Te ligo quando tiver novidades.
Abraço
Tomy
Não parece um texto de alguém prestes a se matar.
Quatro dias depois, ontem, minha cunhada Rafaela ligou avisando que estava sendo velado no cemitério do Morumbi. Enforcou-se com o cabo da tv.
***
Há aproximadamente 10 anos, meu ex-cunhado Lúcio enforcou-se com o cordão da capoeira. Há uns tantos anos, aproximadamente na mesma época, meu colega de medicina Popi matou-se com uma overdose de barbitúricos e minha colega de medicina Ieda matou-se com uma injeção de potássio. Quando eu ainda morava em Boston, em 1994, o namorado da Rebecca, Rafaello, pulou do prédio onde morava (então descobrimos que ele era o rei da Itália, estudando incógnito na Harvard, todos os papparazzi do mundo apareceram ao mesmo tempo).
Não vou falar sobre o desespero, sobre a depressão, sobre a desistência. Mas sim sobre o que esses casos tinham em comum: todas essas vítimas, além de serem os únicos suicidas que conheci pessoalmente, estavam sob o efeito de anti-depressivos modernos, de uma classe chamada SSRI, inibidores seletivos da recaptação de serotonina. Prozac, Zoloft, Paxil, esses, entre outros.
Se você fizer uma busca ligeira no Google, utilizando as palavras-chave "Prozac, Zoloft, Suicide", aprende rapidamente que a correlação entre essas drogas e um aumento na taxa de suicídio não é novidade. Alguns estudos apontam uma incidência de quase 4% de suicídios entre os pacientes que utilizam esse tipo de droga, contra 0,2 a 0,8% entre os que utilizam outros antidepressivos. Existem milhares de processos na justiça americana contra os laboratórios que os fabricam, todos por responsabilidade em suicídios. Há vários estudos clínicos associando estes antidepressivos a efeitos colaterais como irritação, mania, agressividade, auto-agressões e outros. Algumas crianças sob o efeito dessas drogas exibem um comportamento estereotipado de estapear o próprio rosto.
Li o relato de um caso em que os pais descrevem os últimos dias de vida de sua filha de 16 anos. Ela estava ansiosa em relação a um namoro. Após uma consulta de 30 minutos, um terapeuta indicou receitou 25 mg de Zoloft. Alguns dias depois, ela se internou voluntariamente, por não se sentir segura com a droga. Na internação, aumentaram sua dose para 150 mg diárias. Ela se enforcou no terceiro dia de alta.
Nos EUA, hoje as embalagens dessas drogas vêm com um aviso numa moldura negra, avisando quanto ao maior risco de suicídio. Aqui, nunca vi ninguém falar nada a respeito.