Wednesday, June 18, 2025

A Quiromante



 Ele abriu o gabinete do banheiro batendo as portas com raiva, afastou ofegante o recipiente gigante de Listerine e retirou de trás dele um embrulho de flanela.

Sentou-se na sua poltrona de couro preferida, depositou o embrulho na mesinha de centro e desacelerou um pouco os pensamentos. A tarde de domingo se transformava de laranja a violeta. Ele sentia uma melancolia típica desses finais de domingo, mesmo sendo daltônico e não conseguindo apreciar totalmente essas transições cromáticas; ou, talvez, exatamente por isso. De qualquer modo, cores não existem no mundo, ele sabia. São apenas reações cerebrais a diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas. Quem é que garante que o meu vermelho não é o mais verdadeiro? Quem é que garante que cada ser humano não enxerga seu próprio vermelho que é diferente de todos os outros?


Cambaleou com sua protofilosofia bêbada até a cozinha, retirou a garrafa do armário e serviu outra dose de uísque no copo de cristal lapidado. Espatifou a forma de gelo na pia e muniu seu copo de algumas pedras.


Voltou a sentar-se na poltrona e encarou o pacote em cima da mesinha com a pouca luz que ainda entrava pela janela. Sentia seu pulso batendo dentro do crânio e dentro do peito. Tomou mais um gole do uísque e ligou a TV. Seus olhos se alternavam entre o apresentador dominical e o embrulho. As ondas de fúria e autopiedade iam e viam, intercaladas com pensamentos randômicos sobre as imagens das dançarinas que sorriam para a câmera. 


A luz azulada da TV agora se refletia no metal escuro da pistola. Ele usou a flanela para polir a arma, até que não restasse um sinal de gordura ou impressão digital, não por qualquer precaução, somente por capricho. Esta atividade metódica distraiu sua mente e ele quase esqueceu a sua raiva. 


Começou a lembrar dos momentos bons: como no dia do seu aniversário, em que ela entrou no quarto caminhando nas pontas dos pés. Ele fingiu que dormia para não estragar a surpresa. Ela abriu o armário de sapatos e retirou o pacote de presente. Abriu uma fresta na cortina projetando um feixe de luz matinal exatamente sobre o rosto que fingia adormecido. Depois ela fez todos os carinhos que faziam com que ele tivesse a ilusão momentânea de que a vida pudesse ser boa. Talvez. Se ele pudesse realmente acreditar que ela fosse sua. Somente sua. 


Ele nunca havia sido uma pessoa ciumenta, achava. Ninguém pode pertencer a ninguém; quando um não quer, não há por que continuar. Tudo é uma questão de negociar limites e expectativas. Com ela era diferente, no entanto. A racionalidade o abandonava em cada esquina desse relacionamento que já fazia mais de um ano, agora ele se dava conta que seu aniversário estava próximo novamente.


Ela era garota de programa. Simples assim. Desde a separação, ele decidira nunca mais se casar ou namorar. Acolheu a opinião vulgar dos seus amigos que diziam serem mais econômicos os relacionamentos remunerados. Ele a viu num anúncio de internet: Acompanhantes de Luxo em São Paulo. Uma sequência de mulheres e meninas de todos os tipos e feições, em roupas íntimas ou nuas, em posições de provocantes a ginecológicas. Seu olhar prendeu-se espontaneamente naquela foto da menina loira, magra, que não exibia os peitões e bundões que as outras candidatas ostentavam, mas tinha um meio sorriso tranquilo e confiante, um olhar de quem não deve nada e nem está tentando impressionar a ninguém. 

O encontro foi numa kitchenette, doravante chamada estúdio, em Moema, o “local próprio” antecipado no site. Ela o recebeu com um sorriso suave e um beijo no rosto. Pediu que ficasse à vontade enquanto ela iria tomar um banho e trocar a roupa de ginástica (ele se adiantara um pouco no horário, é bem verdade). O quarto tinha um cheiro de morango esfumaçado que vinha do incenso que ela deixara queimando na mesa de artesanato em madeira. A luz do abajur era amarelada e uma música espanhola sutil vinha de um pequeno “boom-box” em cima da cômoda. Ou seria francesa? Depois de entrar no quarto vestindo um quimono de seda vermelha, ela explicaria ser uma banda de Barcelona, que cantava em catalão. Que ela conhecera numa viagem, mochilando pela Europa. 


Ele nunca havia saído do país. Quer dizer, uma vez fora até Foz do Iguaçu com os pais, e compraram porcarias na Ciudad Del Est, que na época chamava-se Puerto Stroessner. Mas só. Sua vida havia sido toda no bairro da Saúde. Morando perto dos seus pais, casando-se com a vizinha de infância também nissei como ele. Quando seu pai faleceu, ele assumiu o negócio da família, uma quitanda na Luiz Góes, quase na esquina com a Domingos de Moraes. Mesmo a separação da sua mulher não foi um trauma. Foi um desinteresse mútuo e crescente de um pelo outro. Quando ela quis mudar-se para perto dos parentes no Paraná, ele não se opôs. Não tinham filhos. 


O que leva uma moça que viaja pela Europa a tornar-se uma prostituta? Ele se indagava. Quando ela deixou cair pelo chão o quimono e o tocou pela primeira vez, ele compreendeu. Ela possuía a destreza calma das pessoas acostumadas a estarem à vontade dentro da própria pele. Naquela noite, ele descobriu que a vida podia boa como ele nunca suspeitara. Ele achava.


A pistola em cima da mesa apontava para ele. A luz dos comerciais na TV fazia-a como que dançar no escuro da sala, acompanhando os jingles. Ele não podia ir em frente com isso, tinha que se acalmar. Ela era o amor da sua vida. E ele já imaginara, um dia, a possibilidade de ser o amor da vida dela. Até acreditou, por um momento, que fosse algo próximo disso. Que pelo menos ela se importasse com ele. Que o respeitasse. Respeito, era o mínimo que ele pedia. Nem isso ele sentia que ela ainda tivesse por ele. Ela não tinha, ele sempre soube disso. Era uma traidora incorrigível, tal qual a ciganinha dissera.


Na semana anterior, haviam chegado as ciganas que vinham a São Paulo toda a primavera. Mulheres e meninas com vestidos compridos, adornos de ouro, lenços na cabeça prendendo os cabelos em geral claros, contrastando com sua pele queimada pelo sol. Viviam de esmolas, vendendo panos de prato, praticando a quiromancia, e também pequenos furtos, suspeitava-se. Enquanto atravessava a feira, uma menina que não devia ter mais de treze anos tomou-o pelo pulso e prometeu-lhe ler a mão sem cobrar nada. Ele tentou esquivar-se, mas ela o olhou fundo nos olhos com os seus próprios, azuis, sérios, que iluminavam seu rosto magro, sujo e moreno. Disse (com um sotaque muito estranho que poderia ser romeno) ver uma mulher mais jovem na vida dele; que ela estava com outro naquele momento, que ia com muitos homens, com todos os que queria; e que ele não deveria esperar nada de bom vindo dela. A pequena cigana largou seu pulso e saiu correndo através multidão da feira. Ele tentou segui-la, mas em vão.


Era óbvio que ela ficava com todos. Era claro que ela não cumpria sua parte do acordo. Como uma mulher daquelas ia se segurar? Se restringir a um só? Como uma Afrodite como ela iria contentar-se com um mortal como ele? Afrodite... O ódio inundou-lhe o estômago de bílis negra novamente. Como ela podia ser tão ingrata? Depois de tudo o que ele fizera por ela?


No terceiro encontro no estúdio de Moema, ele já estava apaixonado. Ela era o primeiro pensamento que lhe ocorria quando acordava e a última visão que lhe habitava a mente antes de adormecer. Tentou ser um homem melhor por sua causa. Começou a exercitar-se. Comprou calças de alfaiataria. Barbeava-se diariamente, agora. Tratava melhor os clientes, que notavam uma mudança no atendimento da quitanda, que na verdade transformara-se num mercado. Reuniu as economias e comprou o imóvel vizinho, que abrigava uma oficina mecânica. Expandiu seu negócio. Depois de um ano, ele fez a proposta: sustentá-la em todas as suas necessidades, tirá-la “dessa vida”. Ela recusou. Estava confortável. Ela tinha planos que não incluíam ser submissa a um homem. Na verdade, ela nunca disse isso: ele imaginou. Mas a imaginação e realidade começaram a misturar-se. O amor tem algo de loucura, acontece mais na mente de quem ama do que entre duas pessoas. Algum tipo de amor, pelo menos. É uma espécie de psicose, uma alucinação na qual se quer acreditar. Como um mantra, a ideia que se faz da pessoa fica sendo repetida na mente, até que se acredite nela. Naquela noite, ele bebeu sozinho pela primeira vez e formulou que o amor é um tipo de loucura. Tentou escrever um poema a respeito, mas dormiu no sofá depois de alguns minutos. Continuou a frequentar o estúdio, tantas vezes por semana quanto ela podia encaixar em sua agenda. Seis meses depois, repetiu a proposta: ela aceitou. Ele nunca soube exatamente o porquê. Ela simplesmente disse que havia mudado de ideia. Não tinha o costume de explicar-se muito. 


Os primeiros meses foram de alegria. Ele a encheu de presentes. Joias. Roupas. Perfumes. Via de regra, ela trocava tudo nas lojas por coisas mais de acordo com seu gosto, mas ele não se ofendia. Importava somente que ela estivesse feliz. Ela parecia contente. Nunca reclamou de nada. Ela tinha uma leveza inerente que a fazia flutuar acima da realidade, fazendo com que ele jamais soubesse o que se passava em sua mente. De início, isso bastava para ambos e o arranjo funcionava sem muitos problemas. Sem nenhum problema que não fosse resolvido. Com o tempo, entretanto, ele foi ficando mais ambicioso. O fato de ela ser tão abstinente o exasperava, às vezes. Tentava interrogá-la, pressioná-la, coagi-la a abrir-se com ele. Mas ela flutuava para longe, simplesmente não engajava em discussões, era refratária a todas as suas insistências. Como resultado, ele nunca soube o que ela realmente pensava da situação que compartilhavam, nem que ideia ela fazia dele.


Ele retirou o magazine de dentro da pistola: quinze tiros. Tomou outro gole de uísque, acariciando com o polegar as pontas das balas encaixadas no pente. Ele podia imaginar o que se passava na cabeça dela. Ela certamente o achava um otário. Um idiota que só servia para sustentá-la. Tentou ligar pela centésima vez: direto na caixa postal. O que mais o irritava eram os pequenos detalhes. Como ela não deixava que ele seguisse sua localização pelo celular. Como ela não deixava seu celular sinalizar se ela estava conectada. Como ela ficava horas incomunicável, supostamente sem bateria. Ou sem sinal. Ou sem o celular. Uma ninfomaníaca aproveitadora, só podia ser. Mas ia ter o que merecia. Hoje ela havia passado dos limites. Começou logo cedo pela manhã. O modo como ela ria ao telefone, no jardim. Ela não viu que ele estava na varanda e podia ouvi-la. Podia quase ouvir, na verdade. Não estava perto o suficiente para decifrar o que falava, mas o modo como ria, e sorria, o jeito mole de falar... tudo parecia muito claro. Não ficou surpreso quando ela disse que precisava sair, mas ficou possesso. Disse que a levaria aonde quisesse ir. Ela tentou dissuadi-lo, mas ele insistiu. Saíram de carro. Compras no shopping, ela disse. Mas o shopping ainda não estava aberto, era domingo, ele disse. Ela não respondeu. Apenas olhou para as unhas. Depois argumentou que, se estivesse indo a pé, como havia planejado, chegaria na hora exata. O trânsito piorou. Ele estava impaciente. Ela disse que precisava caminhar. Simplesmente abriu a porta e saiu do carro. Ele gritou através da janela. Que voltasse. Que não fizesse a louca. Ela continuou caminhando. Ele fez menção de sair do carro e ir atras dela a pé. Uns ciclistas intrusos, vendo a gritaria, se aproximaram. Ele preferiu evitar um escândalo em público. Inibiu-se. Ela seguiu pela calçada, enquanto ele adivinhava aquele ligeiro sorriso em seu rosto, mesmo pelas costas, tinha certeza daquele meio sorriso de quem acha que não deve nada a ninguém. Viu-a dobrar a esquina, na contramão para os carros, engarrafados pela ciclovia instalada para o domingo. Na calçada oposta, ele enxergou a pequena cigana encarando-o de longe, com olhar muito sério, e balançando a cabeça como que em sinal afirmativo. Pedestres passaram e ela sumiu na turba.


Inseriu novamente o pente cheio de munições na pistola. O álcool atingira um novo nível. Agora ele vagava num território plano e liso de autocomiseração. Sentia um vazio confortável dentro do peito, como se nada mais fizesse diferença. Tê-la ou não. Ser ou não ser. Repentinamente, uma onda de pessimismo e desespero veio de dentro das suas vísceras, como um vômito: ele engatilhou a Glock 9mm e enfiou o cano na boca, num movimento rápido. Urrava grotescamente, arfava e oscilava o tronco para frente e para trás, com a pistola pronta a sujar-lhe a poltrona predileta com os fragmentos de seu cérebro. 


Mas não puxou o gatilho. Tirou o cano da boca e chorou. Um choro longo, sem fim, sem propósito, sem objeto, um choro que vinha de um lugar que ele só conhecia nos sonhos, ou quando estava distraído o suficiente para não encontrar nenhum sentido na vida que não fosse ela. Mas ele nunca a teria. Ela seria sempre de todos, e nunca dele, e nunca de ninguém. Naquele exato momento, ela devia estar emprestando seus carinhos a um homem aleatório, a um qualquer, que a possuiria melhor que ele, que a faria fechar os olhos e sorrir suavemente enquanto a possuía. Esse pensamento era-lhe insuportável. Ele se levantou da poltrona, respirando muito rápido, andou de um lado para o outro na sala, hiperventilando, não, não, se não fosse sua, não seria de mais ninguém, não poderia ser, ele tinha de pôr um fim nisso, mas ela era a razão da sua vida, mas então sua vida não tinha razão de ser, ele também se mataria depois, mas ela teria o que merece, teria o castigo que mereceu, ele apontou a pistola para a TV, soltou um grito longo e enfurecido mirando na dançarina que ainda sorria durante os créditos finais do programa dominical...


 Mas percebeu o ruído e a luz de um carro parando em frente à casa. A voz dela, falando coisas curtas e indistintas. A porta do carro batendo, o carro arrancando. Ele escondeu a pistola já engatilhada e destravada entre as almofadas. Ela girou a chave na porta da frente. Ele permaneceu em pé, encarando a porta. Ela quase se surpreendeu quando o viu ali, de braços cruzados na escuridão, silhuetado pela TV. Ela se aproximou devagar. Ele quis gritar com voz grossa. Mas se engasgou, e saiu de sua garganta um fio débil que mais pareceu um lamento. Onde a senhora... onde você estava? Ele viu seus olhos lânguidos e injetados, o rosto brilhante de suor antigo refletindo a luz da TV, os cabelos desgrenhados, a roupa desalinhada. Ela se aproximou e beijou-lhe os lábios como só ela sabia. Ele sentiu o paraíso na terra novamente, e deixou aquela língua adentrar sua boca e roçar na sua. Não sabia dizer se o hálito de álcool dela não era seu. Ela abriu seu próprio zíper, forçou-o para baixo, ele se ajoelhou à sua frente. Sentiu o gosto dela misturado com o sal das suas lágrimas. Ela apertou a cabeça dele contra seu púbis, e gemeu. 

Letra para uma valsinha




 Valsinha Antiga para Julieta

 

Julieta acorda todo dia cedo

Nas manhãs escreve textos pro jornal

À tarde na rádio ela tem mais um emprego

Que cumpre com zelo excepcional

 

Criou sozinha seus dois lindos filhos

Um tem nome de anjo e outro, de rei

Teve um ex-marido e namorados falhos

Que por irrelevantes não mais mencionarei

 

Mas ela é a mais bela dona de toda a cidade

A alma de toda festa em qualquer louvor

Seu sorriso leve enche a todos de curiosidade

Mas ela não se entrega. De quem seria o seu amor

 

 

É que um dia a vida veio e quase lhe arranca 

O seu bem mais precioso e muda seu enredo

Corredores e doutores de roupa branca

Ela abraçando um filho, embalando o medo 

 

 

Um dia ela deixou que eu lhe segurasse

Sua mão, eu tive entre as minhas mãos 

E vi a criança que dentro habita

Seus ventrículos, seu coração.

 

Eu queria encher seus olhos de tanta risada

Faze-la flutuar no meu tapete voador

Sonharmos juntos uma Itália idealizada

Faze-la feliz, afastar a dor

 

Julieta eu então lhe deixo esta valsinha

Dessas que hoje em dia quase não se fazem mais

Eu não faço isso para que um dia você seja minha

Eu lhe quero sua, com a mente em paz

 

Julieta eu então lhe canto esta carta

Vamos que eu parta sem tido tempo de lhe avisar 

Quero que saiba o quanto foi amada

E admi­rada por este seu par

 

Julieta eu estico um pouco essa canção

O que é exagero, mas ainda uma ideia me ocorreu

Sei que um dia vai explodir de novo toda a alegria no seu coração

Mesmo que não ­seja com este seu Romeu.

Monday, April 01, 2024

Alice

 Alice

 

(ilustração: RAFAL OLBINSKI - WOMAN AND MAN)

 

            A porta do restaurante abriu-se com um ruido de molas antigas e logo se fechou atrás de seu corpo, abafando o ruido do salão pleno de pessoas que a esse ponto praticamente gritavam para serem ouvidas na empolgação da sexta-feira à noite. Alice respirou o ar úmido e frio como há tempos não se via em São Paulo. A garoa fina lembrava sua infância, e ela se aconchegou no casaco impermeável. 

Procurou pelo tato o maço de cigarros no bolso do casaco, tirou um Marlboro e o colocou entre os lábios vermelhos de batom, ao mesmo tempo em que constatava ter esquecido o isqueiro na bolsa. “Não volto lá dentro nem morta”, pensou. Estava num daqueles seus momentos em que ela nem sabia direito de onde vinham o mau humor e a ansiedade, só sabia que tinha de ficar sozinha. Sabia também que aquele namoro, cujo coadjuvante tomava vinho animadamente na mesa repleta de amigos aleatórios, não tinha muito futuro. Na verdade, não tinha futuro nenhum, não fosse a bolsa lá dentro do restaurante, pegaria um táxi ali mesmo e iria para a casa da mãe por uns dias, um lugar onde ele teria menos coragem de abordá-la. E estaria consumado o fim.

Mas um cigarro precisa ser aceso, e ela olhou em volta em busca de uma alternativa. Quase se assustou ao perceber na penumbra a figura de um homem que estivera ali a observando desde que saiu pela porta. Ao ser notado, ele ofereceu: “quer fogo”? Aproximou-se, clicando o isqueiro a gás e oferecendo a chama a uma distância não muito invasiva. Ela aceitou em silêncio, inclinando o corpo e tragando a chama sem olhar o homem nos olhos. Afastou o corpo, soltou a fumaça para cima, cruzando os braços de maneira a sustentar o cigarro de maneira casualmente arrogante, e só então pousou o olhar no seu interlocutor. Era um homem de aproximadamente 50 anos, de aparência árabe. Alice sempre tivera um certo fetiche por homens médio-orientais. Gostava de como seus músculos se definiam sobre a pele em geral macia, das suas proporções longilíneas, mas, sobretudo, amava o seu olhar, a maneira como as pálpebras superiores ficavam semicerradas, enquanto as inferiores se abriam. Devia ser alguma adaptação para a luz do deserto, ela costumava fantasiar. Na verdade, ela apreciava o ligeiro ar de superioridade e desprezo pelos outros mortais que esse olhar conferia ao seu portador. Ela devia levar esse tema na terapia, pensou. Se algum dia voltasse a fazer terapia, o que parecia improvável, àquela altura.

            “Obrigado”, ela se limitou a dizer. Puxou mais uma tragada, desviando o olhar para os carros que passavam na rua. Ficaram em silêncio por alguns instantes. “Você deu sorte”, ele disse, também olhando o trânsito. Ela o olhou inquisitivamente. “Hoje em dia ninguém mais fuma”, ele completou. “Eu também não fumo”, ela disse, voltando a olhar para o meio da rua. A última coisa de que ela precisava no momento era do assédio de um estranho aleatório. Afastou-se, medindo as juntas da calçada com seus passos erráticos. Ao virar-se de volta, pode observar melhor o homem. Era bem o seu tipo, na verdade. Só um pouco mais velho. E tinha um certo ar derrotado. Usava roupas um pouco leves e simples para o clima que fazia naquela semana. E a barba um pouco grisalha estava por fazer, o que não seria um problema estético por si só, ela gostava daquele tipo de aparência rústica; mas o contexto geral tinha um aspecto de descuido. O seu cérebro ativava todos os alertas, dizendo que se afastasse, mas ela decidiu desenvolver um pouco sua afirmação: “Hoje é uma ocasião especial. Comprei um maço depois de muitos anos.” “Espero que seja uma comemoração”, disse ele, sinceramente. “Infelizmente, não”, ela respondeu, olhando para o bico do seu scarpin. “Mas nem é tão grave. É uma questão de 48 horas”, completou. “A fase aguda das desilusões”, ele emendou. Ela levantou o olhar com surpresa: “onde você leu isso”? “Aprendi com a vida, Maria Alice”. Ela sentiu um frio no estômago.

            Nesse exato momento, seus amigos abriram estrepitosamente a porta do restaurante, invadindo a calçada com suas risadas e gritos, e Alice desviou o olhar na direção de seu futuro ex-namorado, que trazia sua bolsa e uma expressão preocupada. Quando se virou novamente para Abdul - sim, só podia ser Abdul - ele já tinha desaparecido na contraluz dos faróis dos carros que desciam a Augusta.

 

•••

 

            Quando tinha 17 anos, Alice e suas amigas costumavam ir fazer compras no Brás. Enquanto os playboys iam se divertir nos Jardins, elas achavam o máximo explorar as lojinhas de bugigangas e coisas exóticas. Tinham especial predileção por uma loja na rua Oriente que vendia todo tipo de coisa: roupas, sapatos, aviamentos, brinquedos, eletrodomésticos, doces... E guarda-chuvas. Uma lojinha do Brás como qualquer outra, aparentemente, mas atrás do balcão residia o real atrativo do estabelecimento: Abdul. 

            Ele era um imigrante sírio de uns trinta e poucos anos, sempre de camiseta branca e calças cinzas. Ele sabia o preço de todos os itens da loja de cor, nunca precisou consultar qualquer lista para vender qualquer coisa. E olhava para os clientes com aquele olhar de beduíno pelo qual as meninas suspiravam, especialmente Alice, que sabidamente se apaixonava com uma intensidade superior à dos mortais. Elas iam em bando, fingiam escolher linhas de crochet, botões, tecidos, camisetas, mas, na verdade, ficavam furtivamente observando o objeto de seu desejo coletivo, dando risadinhas e cochichando.

            Quem não gostava nada dessa atividade era Nádima, a mulher de Abdul. Sempre vestindo hijab, seus olhos enormes que pareciam ter uma maquiagem natural ficavam seguindo com um ceticismo irritado aquelas adolescentes que, para ela, não tinham nenhum respeito nem pelo seu casamento nem por si mesmas. Alice sentia muito medo dos olhos severos de Nádima.

            Mas isso não a impediu de começar a frequentar a loja sozinha, durante a semana, sob os mais diversos pretextos. Comprava guarda-chuvas, por exemplo. Era alguma coisa de que as pessoas sempre precisam. Presenteava as tias, a mãe, as primas, Alice era a fornecedora oficial de guarda-chuvas e sombrinhas da família. Gastava mais de meia hora escolhendo, olhando à distância o objeto de seu amor platônico, evitando Nádima pelo labirinto de mercadorias. A parte mais elaborada era atraí-la para o fundo da loja e chegar a tempo de ser atendida por Abdul no caixa. Então, ela aproveitava aqueles momentos para olhar os detalhes de seu corpo sob a camiseta, a maneira como ele se movia, gelar o estômago ao cruzar o seu olhar com o dele, sentir o cheiro da pele de Abdul (que pelo menos ela imaginava perceber). Saía de lá com o coração acelerado. À noite, ardia na cama pensando no seu amor, com o travesseiro entre as coxas. Alice estava decidida a conquistar Abdul. Queria que o sírio fosse seu primeiro homem, não importava que fosse casado. Ela o desejava mais que tudo no mundo, e Deus tinha que perdoar um amor assim tão intenso. 

            Mas ela não sabia muito o que fazer. Não sabia como falar com Abdul, seu desejo era simplesmente entregar-se a ele somente com o poder dos olhares, ser possuída sem palavras com a força dos seus pensamentos impuros. Enquanto isto não acontecia, ela colecionava seus guarda-chuvas. 

            Um certo dia, excedeu-se: pela manhã, comprou uma sombrinha rosa; após o almoço, um guarda-chuva xadrez. Foi então que Abdul a encarou daquela maneira pela primeira vez: “você já não tem guarda-chuvas suficientes, moça”?

            Alice encolheu-se como um gato acuado. Sentia suas bochechas queimarem, até sua testa e pescoço deveriam estar vermelhos como uma pimenta. “Eu vivo perdendo”, ela conseguiu balbuciar. Abdul digitava vagarosamente o preço do guarda-chuva na caixa registradora, sem tirar os olhos da menina. Alice se sentia despida pelo olhar do árabe, enquanto um corrimento quente umedecia sua calcinha e sua espinha se arrepiava. Ela não sabia direito se gostava daquilo; gostava, mas tinha uma sensação de medo no estômago, uma certa náusea que se misturava com o tesão que subia da sua vagina até o útero e eriçava seus mamilos que ela sentia roçando seu soutien rendado que ela escolhia pensando no seu amor. “Acho que você está procurando outra coisa, Maria Alice”, ele disse, e ela não conseguia imaginar como ele sabia seu nome. “Quanto é?”, ela perguntou, como se não soubesse. Nesse exato momento, ouviu a voz furiosa de Nádima gritando em árabe do fundo do corredor às suas costas enquanto Abdul respondia também em árabe, num tom que desagradou profundamente aos seus ouvidos. Deixou os vinte reais em cima do balcão e saiu apressada, sem olhar para trás. 

 

***

 

            Passou o final de semana na casa da sua mãe, até se acostumar à ideia de estar novamente solteira. Não era tão difícil, afinal. Quarenta e oito horas são suficientes até mesmo para se passar por uma síndrome de abstinência de heroína, ela sempre dizia. Qualquer desilusão perde muito de sua energia em um par de dias. Lucas já era uma lembrança relativamente vaga na sua mente quando chegou a segunda-feira e ela tomou o ônibus fretado para Alphaville.

            Um pensamento começou a rondar insidiosamente sua consciência, sem que ela percebesse. Enquanto ela respondia os e-mails dos seus clientes, a imagem do rosto de Abdul ia se formando lentamente na sua memória. Na hora do café, ela pensou sentir o cheiro da loja da rua Oriente emanando da sua xícara misturado ao do seu latte. No almoço, a sensação do corpo de Abdul contra o seu a tomou de chofre. O seu cliente, com quem ela estava à mesa, tentava seduzi-la com insinuações de duplo sentido e sorrisos. Ela nem estava tão irritada com isso como seria costume; sorria de volta apenas na intensidade certa para garantir que ele não desistisse de assinar o contrato; não se mostrava ofendida, mas também não encorajava o homem a seguir em frente com toda a decisão. Ela seguia com o corpo de Abdul em sua mente, e seus olhos de beduíno, o que a deixava lânguida e suavemente conformada com aquela situação.

            Durante o retorno para casa, ela adormeceu. Sonhou que montava um cavalo negro numa praia ao luar e galopavam tão velozmente q o vento, os grãos de areia em suspensão e as gotículas de água açoitavam sua pela fazendo-a arrepiar-se. Acordou sobressaltada, agora com a consciência de que precisava encontrar Abdul.

 

***

 

            A rua Oriente parecia muito diferente daquela da sua adolescência. A calçada mal tinha espaço para os pedestres, tamanha a quantidade de barracas de marreteiros. Ela foi lentamente abrindo espaço entre as pessoas que se protegiam da chuva nas marquises das lojas e nas lonas dos mascates. Seu sapato estava arruinado pelas poças d’água e de lama e ela já se arrependia profundamente daquela ideia. Mas acabou chegando à frente da loja, e hesitou por mais de um minuto. Fingiu examinar a coleção de bonés de marcas famosas na barraca em frente, enquanto espiava pela portinha. Fez menção de acender um cigarro, mas desistiu diante da multidão que se acotovelava na calçada e dava-lhe trancos esporádicos. Entrou. 

            Correu os olhos ansiosamente à procura de Abdul. No balcão, havia uma menina de uns 17 anos, magérrima e de cabelos afro reunidos num coque, escrevendo em um caderno. “Posso ajudar?”, disse a menina. “Não, obrigada, vou explorar um pouco o que você tem aqui”. A menina voltou a fazer o que estava fazendo, sem sorrir ou dizer mais. Alice andou pelos corredores. Tudo parecia ainda mais apertado e desorganizado. Agora havia muitos produtos eletrônicos vindos da china, brinquedos baratos e coloridos juntos aos tradicionais armarinhos. Ela percorria o ambiente pensando na sua adolescência quando fez uma curva e deu de cara com Nádima. Era agora uma senhora gorda e brilhosa, mas mantinha os olhos vivazes e terríveis sob o hijab. “Está procurando algo especial”, disse ela, num tom que Alice não conseguiu definir se era uma pergunta ou uma afirmação. “Obrigada, estou tentando ter uma ideia para um presente de criança bem baratinho”, improvisou. Nádima ofereceu-lhe um pianinho de plástico que tocava sozinho algumas melodias tristes num som sintetizado e lamentável. “Vinte reais”. “Isso vai enlouquecer os pais, né?”, ela tentou sorrir. Nádima não correspondeu ao sorriso. “Ele morreu”, disse Nádima. Alice enrubesceu com era de costume. “Desculpe, quem morreu?” “Você sabe muito bem quem”. “Desculpe, acho que a senhora está me confundindo com alguém...”. “Eu sei muito bem quem você é”, Nádima emendou num tom muito acima do que seria polido. A moça do balcão olhava a cena com olhos arregalados atrás dos óculos de aros pretos e redondos. “Acho que a senhora está realmente me confundindo”, tentou Alice. “Você sabe muito bem de que estou falando”, disse a síria, com olhos fuzilantes. Alice pegou o pianinho de plástico e saiu correndo em direção ao balcão. Atrás de si, Nádima falava em árabes o que certamente soava como insultos seríssimos. Pagou rapidamente e saiu da loja, respirando aliviada o cheiro podre da rua lotada de lixo e gente suja. 

            Tentou andar o mais rápido que podia, segurando o choro, mas a menos de um quarteirão, sentiu uma mão puxando levemente seu braço. “Moça, espera”, disse a menina que estava no balcão da loja. “Acho que ela tá mentindo pra senhora”. 

            Andaram dois quarteirões e subiram uma escada estreita que levava a uma cafeteria turca, uma das últimas remanescentes na rua. Ao entrarem, os homens que fumavam, tomavam café e conversavam em árabe silenciaram, e seguiram-nas com os olhos até a mesa onde se sentaram. “Posso pedir uma fatia de bolo?”, perguntou a menina. Explicou a Alice que a velha sempre dizia que Abdul tinha morrido, mas que na verdade ele estava bem vivo, segundo lhe haviam dito algumas pessoas do bairro. Teria sido uma separação turbulenta. Abdul abrira mão da loja, do dinheiro e da guarda dos filhos. Teria trabalhado em algumas lojas da mesma rua Oriente antes de desaparecer. “Mas dizem que anda por aí,” terminou a menina, já na terceira fatia. Como podia caber tanto bolo numa moça tão franzina, pensava Alice, observando o fundo do seu copo de café turco, onde na borra ela conseguia advinhar as letras M e A. Maria e Abdul? Ou somente Maria Alice?

 

***

            Todo sábado ou dia livre, Maria Alice é vista percorrendo as ruas do Brás. Entra nas lojinhas, inspeciona os produtos que hoje são muito parecidos em todas elas, e investiga quem está nos corredores e atrás do balcão. Presenteia a família e coleciona uma infinidade de guarda-chuvas. 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tuesday, December 19, 2023

Todos querem Mariazinha

Porque é bela, sim…

Mas também porque anda com a firmeza

Das pessoas acostumadas 

A ter clareza 

        de por onde querem andar. 


Mariazinha diz que é um furacão:

O que é dela ninguém tira,

Ou vão sentir sua Ira 

        colossal

E o sim vira um definitivo não.


Mas para mim aparece em sonho,

Suave,

Sorrindo

Como uma chuvinha depois do Carnaval.


Saturday, December 10, 2022

 

Ilustração: ERNIE BARNES
 TO KNOW DEFEAT

Só pra registrar mais uma copa perdida;

em resposta a Casagrande (comentário meu na sua coluna na Folha):


WLADIMIR KIREEFF

Há como emitir opinião sem falar mal dos outros. Futebol hoje é um jogo de encaixe entre as estratégias. O Brasil foi dominado no primeiro tempo, depois virou no segundo e primeiro tempo da prorrogação. Chutamos 11 vezes, eles somente uma (o gol), segundo a estatística da folha. Ao contrário do q estão falando, o erro do Tite foi tentar segurar o 1 a 0, pq depois das substituicoes defensivas perdemos o domínio novamente. Qdo ele percebeu isso, mandou avançar, mas aí já estava desorganizado.


MARCO AURÉLIO MELLO

Melhor análise que li. O Casa mistura tudo, ressentimento pessoal, política e futebol.



WLADIMIR KIREEFF

Em relação ao Tite, apesar dele ter boa leitura do jogo, mesmo q um pouco lenta (geralmente ele só consegue acertar o time no intervalo), inventou demais, a partir da convocação exótica e desequilibrada, e fez escalações esdrúxulas, talvez baseado em fidelidades esquisitas. Muito deselegante ao abandonar os meninos chorando no campo. Não vai encontrar perdão ou simpatia.





Monday, October 10, 2016

Hora Marcada


Ilustração: Edgar Hopper, Morning Sun (1952).


O homem falava havia quase meia-hora e Raquel não conseguia concentrar-se no que ele dizia. Permanecia à sua frente, atrás de sua escrivaninha, com um pequeno sorriso que desenvolvera para expressar empatia, mas na verdade sua mente voava muito distante. Não podia dizer onde: ora seu pensamento fixava-se na desgastada que pendia do colarinho do homem, ora vagava por mil regiões de sua mente e do tempo. Lembrava daquela vez em que tinha sido rude com a professora de inglês e só percebera o fato depois de semanas. Ela ainda acordava de noite envergonhada daquele episódio. E isso havia sido há mais de 30 anos. O tempo da entrevista terminou e ela não poderia dizer quais eram os problemas do homem, que se chamava João. Mesmo assim, combinaram 3 sessões semanais. João concordou em iniciarem na semana seguinte.

 

            Em sua sessão com Rui, seu próprio psicanalista e supervisor, Raquel mencionou sua dispersão com o paciente.

-       Isso é material para a análise, Raquel. Tudo é material! Ele é muito deprimido? Às vezes as pessoas deprimidas estão sem energia suficiente para serem interessantes...

-       Rui, eu sei reconhecer a tristeza. Esse homem... parecia um gravador. Parecia que não estava ali.

            Rui pensou por alguns segundos.

-       E você estava ali? Pode haver algo dentro de você que a impede de relacionar-se com o que ele diz. Você tem certeza de que pode ajudar esse rapaz?

-       Não é um rapaz, é um homem. De uns 60 anos. Não sei...

 

            Mas as sessões continuaram, e Raquel olhava para a parede oposta do consultório enquanto seu paciente falava profusamente no divã, sem se dar conta que a psicanalista não prestava a mínima atenção em seu monólogo. Ao invés disso, ela examinava detalhadamente as imitações de papiro com reproduções de hieróglifos. Escolhera cuidadosamente essas gravuras para seu consultório, pensando serem neutras o suficiente para não provocar juízos de valor na cabeça de seus pacientes. Ao mesmo tempo, deixava transparecer sua simpatia por Jung, uma sutil brincadeira interna com seus colegas de sociedade psicanalítica que ela jamais compartilharia com alguém.

 

            Raquel agora tentava alinhar, usando um só olho, a ponta do seu lápis com a ponta do cetro do Osíris na parede oposta. Foi quando ouviu pela primeira vez em muitas décadas a risada daquele homem. Ela nem sabia a causa do riso, mas o som era muito familiar. Era uma risada fina, penetrante, que discordava totalmente da estatura e corpulência do seu dono. A boca de Raquel encheu-se de uma salivação reflexa e uma náusea que vinha das pernas, da espinha, de todos os seus poros a fez correr para o banheiro no tempo justo para que um jato de vômito fortíssimo ­­­­

 

            Depois de alguns minutos, visivelmente transtornada, ela voltou à sala. Mentiu que estivesse bem, e ainda permaneceu os 20 minutos seguintes, controlando sua náusea, com seus olhos muito abertos e ouvidos bem atentos ao que dizia aquele homem que a havia estuprado há mais de 20 anos.

 

***

 

            Sua vida havia demorado a entrar nos eixos. Depois dos primeiros anos de depressão, Raquel finalmente criou coragem para terminar a faculdade. Primeiro, foi uma coisa de fora para dentro: obrigou-se. Disciplinou-se. Um dia, levantou-se da cama, vestiu-se e surpreendeu a família no café da manhã. Comeu as torradas fingindo ser uma pessoa normal que sentia uma fome normal. Ninguém ousou fazer qualquer comentário a respeito, como se a menor menção ao seu estado pudesse quebrar o encanto que proporcionava aquele momento trivial, o primeiro em quase dois anos. E tomaram seus cafés, comeram seus pães, leram seus jornais, falaram amenidades, como se a vida sempre tivesse transcorrido normalmente.

            Raquel saiu de casa e estranhou a cor azulada da luz da manhã, os cheiros atarefados de antes do almoço que a cidade possuía, as sombras das coisas ocorrendo do lado oposto ao esperado, depois de muito tempo dormindo até o meio da tarde. Ela inalou o ar da manhã... e não sentiu nem mesmo pena de si.

Na terapia, ficava sessões inteiras sem dizer uma palavra. Os meses foram passando, até que conseguiu chorar. Pode ter sido um comercial de carro, ou um filme de sessão da tarde, que disparou o choro que durou algumas semanas. Sua terapeuta limitava-se a passar-lhe os lenços de papel. Ao final da sessão, ouvia que estava fazendo progresso.

            Transferiu de filosofia para psicologia, assegurada de que quem sente a dor também pode curá-la. Depois do terceiro ano, sentiu vontade de viver. Ganhou peso e entusiasmou-se com os estudos.

            Mas seguiu desconfiando de si mesma. De alguma maneira, ela sabia que sua verdadeira identidade era aquela que um dia iria enterrar-lhe um punhal nas costas, quando menos se esperasse. Esse pensamento não era muito claro; era só uma ideia vaga que passava pela sua cabeça, rápida e fugidia como um duende, naquele momento em que a mente da gente está entre o sono e a vigília e os pensamentos são parecidos com sonhos.

 

***

 

            Raquel folheava freneticamente a terceira revista, com as mãos trêmulas. Sua vontade era sair correndo por aquela porta, mas ela já não tinha mais como justificar-se. Havia faltado às últimas duas sessões, tentando recompor-se. Seu coração palpitava cada vez que pensava na possibilidade de Rui descobrir seu segredo. Toda a sua relação com Rui havia sido construída sobre uma mentira, praticamente. Se ela revelasse agora seu segredo, certamente seria o fim de sua carreira. Perderia seu assento na Sociedade, perderia seus clientes, seus amigos... Esse era um pensamento circular que reverberava em sua mente há dias. Com o coração acelerado, levantou-se para ir embora dali no exato momento em que Rui abriu a porta de sua sala para recebê-la. Cumprimentou-a com um sorriso de saudade sincera, ao que ela respondeu com um balbucio incompreensível.

            Um rio de palavras aparentemente conexas saia de sua boca. Esperava um suposto momento correto para contar a verdade medonha que tinha dentro de si, mas não o encontrava. Depois de 50 minutos de torrente verbal, Rui avisou que seu tempo terminara. Raquel então sentou-se no divã, colocou sua bolsa no colo e um choro convulso a dominou. Contou tudo, como havia acontecido, como havia tentado esconder durante anos, como havia reconhecido a risada de seu algoz depois de 22 anos.

-       Mas você tem certeza de que é ele? Será que você não pode ter se enganado? É uma prova muito tênue, você reconhecer a voz...

-       O riso!

-       Ou o que seja. Afinal, você fugiu disso durante quantos anos? Será que não é um movimento seu para tentar resgatar uma...

            Raquel teve um ataque de raiva, sentindo o questionamento de Rui como uma traição. Ele conseguiu acalmá-la parcialmente, mas na verdade o paciente das 17h já havia tocado a campainha por duas vezes. Marcou com Raquel uma nova sessão para aquele mesmo dia, às 18h.  Raquel concordou, mas aquela foi a última vez em que conversaram.

 

***

            As semanas seguintes transcorreram numa atmosfera de sonho ruim. Raquel não teve coragem de retornar ao consultório de Rui, nem de atender a suas chamadas.

            Em seu consultório, Raquel passou a fumar dentro da sala de atendimento, coisa que não fazia desde os anos 1980, quando ainda era socialmente aceitável. Na verdade, ela perdeu alguns pacientes por isso, mas o único que a importava também fumava.

            Quando a dúvida suscitada por Rui ainda estava presente em sua mente, ela tentou direcionar a conversa para que ele pudesse confessar a ela a atrocidade que os unia. Mas ficavam envoltos em sua névoa de nicotina, ele falando sobre sua vida enfadonha de funcionário público e ela tentando detectar algo que confirmasse aquilo que em seu coração tinha certeza. Tentava ser engraçada, na esperança de ouvir novamente aquela risada terrível que confirmaria definitivamente suas suspeitas, mas sem sucesso.

            Em pouco tempo, ele se tornou seu único cliente. Faziam sessões diárias, a preço especial que ele nunca chegou a pagar. Ainda naquele mês, a polícia arrombou a porta do consultório.  Os policiais ainda puderam perceber no ar o cheiro amargo do cianeto. O corpo do funcionário público foi encontrado junto à porta reforçada, com escoriações nos dedos. Em sua cadeira de couro, à cabeceira do divã, o corpo de Raquel parecia repousar, e alguém sugeriu até mesmo perceber um sorriso em seus lábios. No cinzeiro, um cigarro com sua cinza inteira prestes a cair, como se tivesse queimado sem que alguém o tragasse.

 

Wednesday, April 13, 2016

Love Must Be Some Kind Of Psychosis

Here I am again
King of none
(not even myself)
The prune of a summer in vain.

Every cry of the day
Is a path to her.
I am deaf to all other roads
Blind in madness,
Dead.

For love ever is:
Clear to dark,
Wise to fool,
Life to death.

So here I am,
The dead Lord of Unreal.
 What is true?


When the rain
Wet the face of yet another summer
I will know.
And I’ll live once again.

(Illustration: The Robing of the Bride- Max Ernst)


Estou aqui novamente
Rei de nada
(Nem de mim mesmo)
O fruto seco de um verão vivido a esmo.

Todos os sons do dia
São um caminho até ela.
Sou surdo a todas as outras estradas,
Cego em loucura,
Morto.

Porque o amor sempre é:
Claro para escuro,
Sábio para tolo,
Vida para morte.

Então aqui estou.
O Senhor Morto do Irreal.
O que é verdadeiro?

...


Quando a chuva
Molhar o rosto de ainda um outro verão
Eu saberei.
E viverei mais uma vez.